Para que entendam a afirmação, vejam os três textos seguintes: no primeiro, que foi tirado do livro "Terra Aracatiense", o Dr. Abelardo Gurgel Costa Lima, um indiscutível conhecedor de nossa história antiga, provavelmente baseado na tradição oral, descrevendo o início do povoado, relata: "Em pouco tempo São José do Porto dos Barcos tornou-se um pequeno arraial de pescadores, homens do mar e vendilhões, bem à beira do Jaguaribe. Compunha-se de algumas dezenas de casas, que se debruçavam sobre as águas do rio, ou se espraiavam pela baixada" E concluindo: "Isto se passava entre 1623 e 1654"; no segundo, retirado do livro "Efemérides do Ceará", do conhecido historiador João Brígido, consta a seguinte informação:" Já em 1647, do vale do Jaguaribe se faziam grandes suprimentos de gado, ao exército de João Fernandes Vieira. Uma partida, conduzida por João Barbosa Pinto, se compunha de 700 bois!" No terceiro, o Prof. Lauro de Oliveira Lima, respeitado intelectual radicado no Rio de Janeiro, mas apaixonado pela sua cidade natal Limoeiro do Norte, sobre a qual escreveu o importante livro referência "Na Ribeira do Rio das Onças", (que aliás deve ser lido por todos aqueles que desejam conhecer mais de perto o assunto), transcreve a seguinte citação existente no livro "Algumas Origens do Ceará", página 35, do historiador Antônio Bezerra: " O Capitão-mor Abreu Soares fundou o sítio, que a sua viúva e seu filho Pascual de Lima venderam por escritura de 6 de dezembro de 1701, com a denominação de Aracati, ao Comissário-geral Teodózio de Gracisman, pai do Tenente-general Gregório de Gracisman Galvão e de Joana de Orneles, que casou com o Coronel Antônio Nunes Ferreira. Uma filha deste, Paula Barbosa de Gracisman, casou-se com o Capitão-mor Matias Ferreira da Costa. São os doadores de 1500 braças de terra em quadro para a instalação da vila do Aracati, em 10 de fevereiro de 1748 e ascendentes da família Ferreira da Costa...".
Mas como se pode perceber, as afirmações contidas em dois dos três textos são aparentemente antagônicas e foram a razão pela qual, a partir de um certo momento, começasse a sedimentar na tradição oral e nos documentos públicos a informação de que Aracati teria sido fundado em 1701 e não, como de fato aconteceu, a partir de 1603, como diz a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros ou, a partir de 1623, como escreve o Dr. Abelardo Gurgel Costa Lima, isto é, lentamente, a partir daquela célula inicial remanescente da expedição de Pero Coelho, que foi se reproduzindo e dando origem a novas células, ainda que tenha tido sua reprodução acelerada, a partir de um certo ponto, que foi no nosso caso a chegada de muitos adventícios, vindos da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia pelas duas únicas estradas existentes, a chamada estrada de dentro, descendo o rio Jaguaribe e o rio São Francisco e a chamada estrada de fora, seguindo a orla marítima, atraídos pelas notícias das vantagens de se criar gado nas várzeas jaguaribanas (chamadas no linguajar da época ribeiras do Jaguaribe) e pela perspectiva de riqueza fácil adquirida na atividade recentemente descoberta na região, o charque ou charqueada.
Percebendo certamente essas contradições, o pesquisador médico e cidadão francês Pedro Théberge, que residiu no Icó por muitos anos e que escreveu o interessante livro "Esboço histórico sobre a Província do Ceará", afirma que em 1660 já era conhecida a localidade de Boqueirão situada a meio caminho entre Icó e Aracati. E o mesmo Prof. Lauro de Oliveira Lima também faz afirmação ainda mais contundente, talvez com algum exagero, no seu livro "Na Ribeira do Rio das Onças", pág. 133 "Provavelmente o povoamento do Jaguaribe deu se à revelia destas concessões cartonais de sesmarias, apesar das medições oficiais, mesmo porque esta área, durante muito tempo, até o século XIX foi infestada de vagabundos, criminosos fugidos da Justiça, ciganos deportados para o Ceará, cangaceiros de todas as procedências e, posteriormente, dominada pela prepotência e arrogância de latifundiários, com seus cabras e jagunços...". (e também gente honesta e trabalhadora, é forçoso acrescentar).
A pergunta que todos devem estar se fazendo é: qual dos pesquisadores está com a razão, o aracatiense Dr. Abelardo Costa Lima ou o norte limoeirense Prof. Lauro Oliveira Lima, citando o historiador Antônio Bezerra? — Os dois têm razão e o motivo da aparente discordância se originou provavelmente de um fato novo, as Sesmarias do Jaguaribe, que foi a doação pela Coroa portuguesa das terras situadas nas margens direita e esquerda do Rio Jaguaribe, da foz até ao Boqueirão do Cunha, hoje açude Castanhão, a quinze homens do Rio Grande do Norte, todos experientes caçadores de índios e não por acaso parentes entre si. Os tais norte-rio-grandenses receberam, portanto, terras já em boa parte habitadas e cultivadas, com a criação de gado em pleno desenvolvimento, inclusive com alguns povoados se formando aqui e acolá, um deles, o mais próspero, São José do Porto dos Barcos, já exibia em 1623 algumas dezenas de casas e um ainda que tênue traçado de pequena aldeia, como escreve Dr. Abelardo.
Esse fenômeno de alguém, de repente, exibir escritura de posse de uma terra já habitada de muitos anos, até de gerações, chegou até nós e é de todos conhecido, inclusive a venda posterior das terras aos antigos donos pelos adventícios. Caso bem conhecido foi o de Canoa Quebrada, só resolvido na Justiça após querela de muitos anos entre a comunidade, posseira de várias gerações, e alguns ditos proprietários de "papel passado" (escritura). Já a famosa briga histórica de décadas entre a família Feitosa e o clã dos Monte no fim do século XIX teve início por essa mesma razão: os Monte terem obtido por sesmaria terras que já eram cultivadas pelos Feitosa. Mas qual a razão maior para a escolha dos homens do Rio Grande do Norte? — É que estava em curso a "guerra dos bárbaros", como ficou sendo chamado o conflito entre os índios e os sertanejos, para cujo desfecho concorreu o decreto letal expedido pelo governo português de exterminar sem dó nem piedade todos os índios de corso (corso é palavra aparentada com curso e percurso e provavelmente se referia ao nomadismo dos índios, principalmente os da tribo tapuia) da região, com o argumento de que estavam matando o gado dos sertanejos e prejudicando os interesses de Portugal.
Vejam os termos: Ordem Régia de 20 de abril de 1708: "Fui servido resolver se faça guerra geral a todas as nações de índios de corso, entrando-se por todas as partes, assim pelo sertão dessa Capitania, como pelas de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, para que não possam escapar uns sem caírem nas mãos dos outros(...) e as tropas(...) incorporando-se umas às outras, ficará mais formidável o nosso poder e mais seguro o estrago desses contrários e para que se animem os que forem a esta empresa hei por bem declarar que não mais só se hão de matar a todos que lhes resistirem, mas hão de ser cativos os que se renderem, os quais se venderão em praça pública". Isto é, morte ou escravidão.
Em decorrência deste decreto, um único preador (como eram chamados os caçadores de índios) Moraes Navarro matou à traição, numa emboscada, no aldeamento Madre de Deus, isto é, gente catequizada, 400 paiacus. Os tais homens do Rio Grande do Norte foram, portanto, parte da estratégia adotada pelo Governo português para proteger seus interesses econômicos na nossa região, mais uma prova de que a atividade econômica aqui desenvolvida era suficientemente intensa a ponto de despertar o olhar atento e interessado de Lisboa.
E os índios, o que fizeram para merecer tão dura punição? — Bem, esse é um assunto que merece um capítulo à parte, dada a relevância da questão e até para resgatar, junto à opinião pública, a verdade em relação a fatos que culminaram na extinção em massa de todo um povo e ainda mais quando essa extinção deliberada tenha passado à história como uma guerra de índios violentos invasores de propriedades de agricultores ordeiros e trabalhadores, o que foi um falseamento ridículo da verdade com a finalidade mal dissimulada de esconder realidade bem diferente da verdadeira.
A relação das 15 datas (lotes) da primeira sesmaria do Jaguaribe com seus respectivos sesmeiros está inteira no livro do Prof. Lauro Oliveira Lima, no capítulo "O Governador da Bahia concede a primeira sesmaria do Jaguaribe". É uma citação de estudo feito sobre o assunto pelo estudioso de nossa região e por muitos anos vigário de Limoeiro do Norte, Monsenhor João Olímpio Castelo Branco, que resumiu assim o complicado de nomes, lembrando que todas tinham duas léguas subindo o rio e uma légua de cada lado do rio, ou sejam, 4 léguas quadradas: 1. data: da barra do Rio até Aracati (Porto das Barcas), a Manuel de Abreu Soares; 2. data: de Aracati até Itaiçaba (Passagem de Pedra), a Gregório de Gracismão; 3. data: de Itaiçaba até Giqui, ao Cap. Cipriano Lopes Pimentel; 4. data: de Giqui até Jaguaruana (Caatinga do Góis), a Tomé Leitão Navarro; 5. data: de Jaguaruana até Borges, a Manuel Abreu Frielas; 6. data: de Borges até Poço da Onça\Macambira (no Riacho Quixeré) e parte da Chapada, a Manuel Cunha; 7.data: de Borges entestando ao nascente\leste com a 6. data e limitando ao sul com Lagoa do Velho-Araújo no Jaguaribe, a Gregório Gracismão; 8.data: de Lagoa do Velho-Araújo até Arraial (Flores), a Florência Dorneles (família dos Gracismão); 9.data: de Arraial até Sítio Juazeiro (Maria Dias), a Carlos Barbosa Pimentel; 10.data: do Sítio Juazeiro (Maria Dias) até Sítio Lima, incluindo Limoeiro Verde e Tapera, a Geraldo do Rego Borges; 11. data: Do Sítio Lima até Sítio São Braz, a João do Rego Borges; 12. data: do Sítio São Braz até Barra do Figueredo, a Matias Camelo; 13. data: da Barra do Figueredo até Sítio Bom Jesus, a Francisco Borges Valadares; 14. data: do Sítio Bom Jesus até Castanhão, a Lourenço Alves de Matos; 15. data: do Sítio Castanhão até Boqueirão do Cunha, a Manuel Costa Rego.
Fonte: UCHOA, Antônio Rodrigues. As Sesmarias do Jaguaribe. In: UCHOA, Antônio Rodrigues; MELLO JUNIOR, Antônio Porto de. Livro Agenda 2010. Aracati: Edição dos Autores, 2010. p. 33-38.