Aracati

Friday, 18 December 2015 22:05

JACQUES KLEIN | ALLEGRO: DE ARACATI PARA O MUNDO

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Jacques Klein, em ilustração de Mariano Martins presente na capa do LP "Beethoven - Sonatas p/ piano Op.110 e Op.111" (Philips 41103215), lançado em 1983. Jacques Klein, em ilustração de Mariano Martins presente na capa do LP "Beethoven - Sonatas p/ piano Op.110 e Op.111" (Philips 41103215), lançado em 1983.

Aracati, 156 km distante de Fortaleza na direção do Rio Grande do Norte, é hoje bastante conhecida como uma terra de imperdíveis atrações turísticas, senhora de um carnaval agitado e de lindas praias: Majorlândia, Canoa Quebrada e Quixaba, dentre outras. 

Os poucos que, fugindo ao plano turístico, se dão ao trabalho de estudar a história da cidade descobrem que nas últimas décadas do século retrasado e começo do século passado, a então pequena e pacata urbe, debruçada sobre as margens do rio Jaguaribe, já se destacava por suas tradições. 
 
Desde o período colonial até muito recentemente, Aracati era um dos mais importantes núcleos de propagação civilizatória do Ceará. Conhecida como a Cidade dos Sobrados de Azulejos, por ostentar nas fachadas dos seus prédios e casarões antigos belíssimos azulejos coloridos, importados de Portugal, orgulha-se de ser terra natal de alguns dos mais ilustres filhos do Ceará. Lá nasceram, para mencionar apenas alguns, Adolfo Caminha, Beni Carvalho, Costa Barros, Pedro Pereira, Castro e Silva, José Avelino, Liberato Barroso, Dom Manuel e o Dragão do Mar, dentre outros, cuja importância é atestada em algumas das principais ruas de nossa capital que exibem seus nomes famosos. 
 
Foi no Aracati que surgiram as famosas charqueadas ("oficinas de carnes", como eram então chamadas), comércio importante que se espalhou pelo Nordeste inteiro e ainda prosperou no Rio Grande do Sul, pois de Aracati partiu José Pinto Martins para instalar salgadeiras às margens do arroio de Pelotas, em 1780, sendo hoje considerado o fundador daquela cidade gaúcha. 
 
A cidade ostenta o honroso título de ter sido a primeira do interior cearense a adquirir material tipográfico e a imprimir um jornal. Desde 1891, a imprensa funciona em Aracati, publicando-se, no decorrer dos anos, cerca de 65 jornais e revistas. Seu primeiro jornal chamava-se O Clarim da Liberdade, órgão político de linguagem agressiva que pregava abertamente ideias republicanas. 
 
Aracati também sediou o desenvolvimento do comércio de exportação de algodão e cera de carnaúba, produtos de capital importância para a economia do Ceará e do Nordeste no decorrer do século XIX e grande parte do século XX. Atualmente o município é grande exportador de camarão e lagosta, gêneros responsáveis por significativo percentual do PIB cearense. 
 
 
A exportação do algodão aracatiense — desde os meados do século XIX até as primeiras décadas do século seguinte — atraiu para aquela cidade um pequeno núcleo de comerciantes de origem judaica, quase todos, senão todos, da Alsácia, região francesa que pertenceu à Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Estes comerciantes judeus, associados a firmas locais, rapidamente se integraram no comércio, na vida, e nos costumes da pequena comunidade, contraindo, ao mesmo tempo, matrimônio com filhas das tradicionais famílias nativas. Estabelecidos, deram ímpeto e dinamismo não somente aos negócios e comércio exportador de algodão, mas também à vida social e cultural do município. Destacam-se, dentre estas famílias judeo-aracatienses, os Meyer-Myrtil, os Levy, os Gradwohl e os Klein. 
 
O primeiro Klein a aportar em Aracati foi o avô do nosso biografado, que também se, chamava Jacques Klein, em meados da década de 1870, proveniente de um vilarejo chamado Quatzeheim, cerca de 20 quilômetros de Estrasburgo, a principal cidade da Alsácia, e que chegou ao Brasil falando francês, alemão e alsaciano, língua nativa do seu torrão de origem, hoje quase extinta. 
 
O velho Jacques Klein chegou a ser citado por Gustavo Barroso, notório antissemita, em O Judeu Maltês, uma das histórias de seu livro de memórias, Liceu do Ceará, onde o escritor relembra os nomes e as figuras de vários judeus que viviam no Ceará quando de sua infância, desdenhando de todos. O avô do pianista recebeu a pecha de "barrigudíssimo" pelo imortal da cadeira n. 19 da Academia Brasileira de Letras. 
 
Jacques, o avô, casou-se com Caetana — apelidada de "Sinhá" — uma bela jovem da família Porto. Deste casamento nasceu seu único filho, em 1891, batizado Alberto Jacques, pai do nosso biografado. 
 
Anos mais tarde, em 1914, Jacques acolheu dois sobrinhos, filhos de seu irmão Josef, que se chamavam Albert e Henri. Foram estes, portanto, os fundadores da família Klein no Ceará. Albert, infelizmente, faleceu pouco tempo depois de sua chegada a Aracati, afogado num acidente de barco (alguns dizem jangada) no Rio Jaguaribe. Em 1918, falece o velho Jacques. Restaram somente Alberto e seu primo Henri, que aportuguesou g nome para Henrique, quando da naturalização, para darem continuidade ao nome da família no Ceará. 

Henrique Klein casou-se com uma aracatiense de nome Luísa, da família Pinheiro, com quem teve oito filhos; transferiu-se para a capital cearense na década de 1930, onde se radicou e faleceu. 
 

Alberto contraiu matrimônio com Gasparina Campelo. Desta união nasceram três filhos: Jacqueline, a mais velha, Jacques e Claude, o caçula. Jacques nasceu às dez e quinze do dia 10 de julho de 1930, seu nome, obviamente, foi dado em homenagem ao avô paterno. 
 
Jacques Klein, o maior pianista clássico brasileiro do século XX e o aracatiense mais internacionalmente conhecido até hoje, nasceu "num sitiozinho", como ele gostava de lembrar. O lugarejo chamava-se Bouquet Val, conforme recorda sua irmã Jacqueline. O nome completo de seus pais, mister consignar, eram Alberto Jacques Klein e Gasparina Campelo Klein. Seus avós paternos, Jacques Klein e Caetana Porto Klein; e matemos, Adolpho Cordeiro de Morais Campelo e Francisca Nepomuceno Castello Branco Campelo, conhecida por "Nenê". 
 
Jacques foi registrado no dia 21 de julho de 1930 sob o número de ordem 151, às fls. 175 V/176, do livro A-22. Curiosamente, talvez por distração ou lapso do tabelião, omitiu-se no seu assento de nascimento o Campelo, de sua mãe, ficando seu nome completo, tão somente, Jacques Klein. 
 
Poucas semanas depois, no dia 16 de agosto, recebeu o batismo na tradicional Igreja do Bonfim, tendo como padrinhos seus tios, o Cel. João Gentil e Dona Sara Campelo Gentil. 
 
Jacques teve uma infância feliz e despreocupada, típica aos filhos de famílias abastadas do nosso interior. Frequentou, com seus irmãos, as melhores escolas, estudou com os professores mais qualificados, enfim, cresceu num ambiente alegre e descontraído, no seio de uma família culta e honrada que lhe dedicou muito amor, predicado indispensável para um desenvolvimento saudável. 
 
Praticou todas as atividades peculiares a uma criança ativa e irrequieta. Ele mesmo dizia: "como a maioria dos outros garotos, eu participava de todos os brinquedos comuns à idade. Fui até um menino bastante levado". Adorava a praia de Majorlândia, "a praia mais bonita do mundo", gabava-se como bom aracatiense, e, naqueles tempos, considerava o futebol seu esporte favorito. Era, porém, um garoto gorducho. Louro, de olhos azuis, recebeu, na família, o apelido de "Jack boy". 
 
Cedo, revelou uma genialidade evidenciada por um impressionante talento musical, apesar de não ser de uma família tradicional de músicos. Seu pai, Alberto, tocava muito bem piano, tendo, inclusive, estudado no Rio de Janeiro com Godofredo Leão Veloso, considerado o melhor professor da época. Seu primo Henrique era, por sua vez, um exímio violinista. 
 
 
O pai de Jacques destacava-se, sobretudo, como grande amante da música erudita e impulsionador de talentos e atividades culturais. Batizou o filho mais novo de Claude Richard por conta da admiração que nutria por Claude Debussy e Richard Wagner. Fundador e presidente da Cultura Artística de Fortaleza e do Conservatório Alberto Nepomuceno, Alberto, naturalmente, propiciou o despertar, no pequeno Jacques, do interesse pelo piano. Os primeiros anos transcorreram, assim, neste meio musicalmente favorecido, altamente potencializado pela diretoria que o pai exerceu nas instituições artísticas mencionadas. 
 
O sangue artístico aflorou com pouco mais de cinco anos, quando começou a tocar piano com um dedo só. Sua irmã Jacqueline conta que surpreendeu aquele bebê crescido ao piano executando uma marchinha do carnaval de 1936 (a Marcha do Grande Galo, de Lamartine Babo). Ao ouvir a inconfundível melodia ("co-có-có-có-có-ri-có, o galo tem saudades da galinha carijó") e ver que o irmão, sem nenhuma aula, era quem executava, correu para chamar a mãe. Dona Gasparina ficou fortemente impressionada. No dia seguinte, Alberto tratou de dar início a seus estudos com Dona Julieta Araripe. Com cinco anos de idade já tocava, com grande expressão, vários autores clássicos e aprendia com uma rapidez impressionante. 
 
Jacqueline e Claude também estudaram piano, por obra e graça do extraordinário Alberto. A atitude paterna foi decisiva para Jacques. "Meu pai", disse certa feita, "era o que se pode chamar de uma pessoa muito florentina que amava e prestigiava a arte, sobretudo a música. Cada vez que aparecia no Brasil um intérprete famoso, ele tratava de convidá-lo para um recital no Ceará. Assim estimulou a minha vocação". 
 
Alberto, diga-se de passagem, às vezes agia com zelo e rigor exagerado, privando Jacques de certos folguedos de infância. Rubens de Azevedo, em Memórias de Um Caçador de Estrelas, conta este ilustrativo episódio: 
 
Fui várias vezes à casa do Presidente da Sociedade de Cultura Artística, Sr. Alberto Klein. Encontrei, muitas vezes, choroso, ao piano, o menino Jacques Klein e o pai obrigando-o a estudar 'É preciso estudar, menino!' O velho tinha razão e Jacques Klein tornou-se o grande virtuose que o mundo inteiro aplaudiu. 
 
A inclinação para o piano, despertada na mais tenra idade, é claramente comprovada pelo interessante testemunho dado por sua prima Edith Pinheiro Guimarães, que, num bate papo informal e saudoso com Jacques, relembrou episódios de suas infâncias, vividas em comum no Ceará. Recordou-se Edith, dirigindo-se a Jacques: 
 
Recentemente, em uma encantadora conversa, Beatriz Philomeno, também prima de Jacques, nos relatou essa mesma história, mas fazendo alguns reparos à versão de Edith. Disse Dona Beatriz que a festinha na qual Jacques "roubou" o show de suas primas foi realizada em comemoração à chegada de Dona Sara Campelo, mãe de Beatriz, que retornava da Suíça, onde levara um filho para tratamento de paralisia infantil. Estavam presentes à reunião, recorda-se vividamente, Maria Luiza Linhares Fiúza, Heloisa Campelo, Edith Guimarães, e ela, que então chamava-se Beatriz Campelo Gentil. 

 
Poucos meses antes dessa festa, os Campelo Klein haviam trocado Aracati por Fortaleza para residir. As razões da vinda da família de Jacques Klein, tanto do Aracati para Fortaleza, quanto, mais tarde, de Fortaleza para o Rio de Janeiro não são perfeitamente conhecidas. As causas geralmente apontadas revestem-se de meras especulações. 
 
Uma das versões indica pressões econômicas sofridas nos seus negócios interioranos. Argumenta-se que o comércio de exportação de algodão, em virtude da conjuntura internacional, não mais oferecia os mesmos lucros nem as vantagens de anos anteriores, e, por isso, Alberto resolveu mudar-se para Fortaleza em busca de melhores oportunidades comerciais. 
 
Uma outra hipótese sustenta a forte influência da família Campelo, lado materno de Jacques, residente há muitos anos em Fortaleza e presença augusta na sociedade alencarina. O avô materno de Jacques, o Dr. Adolpho Campelo, personalidade carismática, era juiz de direito na capital e gozava de muito prestígio na cidade. 
 
Outros, ainda, justificam a mudança face ao grande interesse de Alberto pelas atividades artísticas e culturais, assim como pela necessidade de oferecer aos filhos melhores condições para o desenvolvimento dos seus dotes intelectuais. A pequena Aracati, e até mesmo Fortaleza, pouco depois, não eram suficientes para darem aos filhos as oportunidades que sua boa condição financeira possibilitava. 
 

Foi em Fortaleza que Jacques iniciou seus estudos de piano. Sua primeira professora, Dona Julieta Araripe, foi sucedida por Dona Nadir Parente. 
 
Mesmo na mais tenra idade já tinha as chamadas inclinações fundamentais: transpunha e improvisava. E, como disse um amigo da família, "ensopava os pais de orgulho". 
 
Aos seis anos tocou com impressionante desenvoltura para a famosa Guiomar Novais e para o não menos famoso Nicolai Orloff. Revelou-se, ainda, aos nove anos de idade, um critico musical digno de elogios. Vale a pena transcrever aqui sua apreciação, publicada em O Povo, no dia 4 de setembro de 1939, sobre um recital realizado em Fortaleza três dias antes: 

Na noite de 1º do corrente apresentou-se ao público de Fortaleza a genial pianista Maria Guilhermina. Tive então o ensejo de ouvi-la em magistral concerto. Fiquei maravilhadíssimo... Impressionaram-me por demais as músicas Appassionata de Beethoven, o Prelúdio de Prokofiev, o talentoso compositor polonês, e a Dança do Fogo do grande [De] Falia. A parte chopiana teve em Maria Guilhermina uma intérprete divina. Foi sem favor uma noite de arte das mais destacadas que nos ofereceu a Sociedade de Cultura Artística. Maria Guilhermina encantou-me. 


BEZERRA, Agamenon. Jacques Klein. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2006. 

 

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