Lembro-me que estávamos dormindo na casa da nossa tia Teté, que era vizinha da nossa (rua do Comércio 210) [...], e quando acordei de manhã, vi os penicos boiando, como verdadeiros barquinhos de papel, que a estes se assemelhavam até pela cor branca da louça de que eram feitos.
Levantei-me assustado e coloquei os pés dentro d'água, pois o rio Jaguaribe havia invadido a nossa maior privacidade e o que nos valeu, é que dormíamos na rede, que sendo alta, não foi atingida pela inundação.
Aí, então, começou o lufa-lufa de apanhar tudo o que fosse possível salvar da enchente, para colocar no barco que meu avô Quincas havia providenciado, para nos levar à nossa fazenda, que fica na margem esquerda do rio e que na sua parte mais alta, não é atingida pelas inundações periódicas.
Em 1917, havia ocorrido outra cheia de igual porte, quando várias pessoas da família Figueiredo morreram afogadas, quando passeavam de barco no perigoso rio, quando cheio demais, e o mastro da embarcação tocou no fio telegráfico, fazendo a barca virar e os que não sabiam nadar, foram arrastados pela correnteza, no lugar denominado Tomé.
Na cheia de 1924, muitas famílias eram embarcadas pelas varandas dos sobrados, tão alta estava a água dentro da cidade e todos tinham que correr o mais depressa possível, para salvar a própria vida, antes que começassem os desmoronamentos e os consequentes redemoinhos por eles causados, com risco de vida para os que estavam próximos.
O difícil, além de sair da cidade inundada, era transpor a correnteza violenta, causada por um rio de 500 metros de largura habitualmente, transformado numa largura de mais de 2.000 metros.
Para evitar esta grande correnteza, era preciso sair com o barco pela parte mais oeste da cidade, no lugar denominado Cruz das Almas, onde havia o campo de futebol, para cruzar o rio na direção do Tomé ou Barreira Vermelha, onde hoje fica a ponte Juscelino Kubistchek, com 500 metros de largura, para que o barco, empurrado pela grande corrente, aportasse no Porto de José Alves, onde fica a sede da fazenda do meu avô, hoje nossa e dos nossos primos, Maria, Lucimar e Armando, filhos da tia Teté e dos meus irmãos José e Helena, que lá moram até hoje.
Pra isso, estávamos entregues à perícia do timoneiro, que ficava encarregado do leme e da força dos remadores, que em número de oito, quatro de cada lado do barco, mantinham a sua proa apontada para o Tomé, no sentido de não sermos arrastados para a Barreira Preta, lugar onde a correnteza era mais acentuada, dada a grande curva que o rio faz nesse local, onde poderíamos até soçobrar.
Nossas tias avós, irmãs do meu avô Quincas, chamadas carinhosamente, Mimim, Mina, Mindoca, Cá e Flor, apelidos de Hermínia, Guilhermina, Felismina, Ricardina e Florinda, iam juntamente com minha mãe, tia Teté e Leonor, ajoelhadas no barco rezando, para que a travessia se fizesse a são e salvo, pois além dos adultos, eram 8 crianças, 4 meninos e 4 meninas, além dos empregados e do meu avô.
Felizmente, conseguimos atravessar o rio e aportamos no lugar denominado Alto da Cheia, onde iríamos passar uma alegre temporada de férias, tato em que se converteu a cheia para as crianças, pois, para os adultos era um grande transtorno, mas, para as crianças era motivo de aventura e de uma temporada fora da rotina, pois até o horário rígido de dormir, que era às 19 horas, foi relaxado para as 20, apenas com a falta da tia Belinha Souto, amiga da minha mãe, que ia todos os dias nos contar história na cidade, mas que com a cheia, teve que ir para o seu sitio Cajueiro, onde havia também um Alto para as cheias periódicas, que afligem a centenária cidade de Aracati.