Aracati

Wednesday, 04 July 2012 22:07

CASTORINA: A FONTE DOS APELIDOS NÃO SECOU

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Castorina Pinto Castorina Pinto GERALDO OLIVEIRA

Dotada de boa memória, viajada e inteligente, Castorina é um bom papo, não deixa a gente se desligar, nem mesmo por instantes, de sua figura encantadora e magnetizante. Seu grande amor, depois do Aracati, é o Recife, onde ela sempre ia vender rendas e bordados. Recife, como Aracati, é uma cidade de muita água. 

Tem mar e rio, muitas pontes e porto movimentado. Isso é o seu fraco. 
Posso dizer que me criei dentro d'água. Sou da água doce e da salgada ao mesmo tempo. Não me assombrei nem mesmo com a cheia de 24. 
Ela se refere à enchente de 1924, quando Aracati foi totalmente inundada, ficando quase submersa. Ainda hoje tem lá o Alto da Cheia Grande, onde muita gente escapou de morrer afogada. 

  

O AMIGO DESEMBARGADOR 

 
-Eu não gosto de beber mas nesse dia entrei na Cumbe. Cumbe é a cachaça oficial de Aracati e caju é o tira-gosto de fé. O desembargador Ubirajara Carneiro foi promotor em Aracati, faz muitos anos. Ali fez uma grande amizade com Castorina, a quem o velho magistrado dedica especial atenção. Todos os domingos eles se encontram para uma conversa informal, o que ambos passaram a chamar "um domingo alegre". Insistimos, mas ela desconversou: 
-O desembargador não tem. 
Esse "não tem" significa apelido. Sem dúvida por respeito a uma velha amizade, mas a fonte não secou. 
Pelo comum, quando uma pessoa chega aos sessenta anos vai logo tratando de se acomodar, achando que já deu o que tinha de dar e por isso mesmo o melhor é encostar as "chuteiras". Outras, entretanto. se bem que em número reduzido, mantêm-se em bom estado físico e mental depois dos oitenta, como ocorre com Castorina Chaves Pinto, a famosa Castorina do Aracati, atualmente com 88 anos bem vividos. Inteligente, alegre e jovial, ela está para o humorismo assim como Tristão de Ataíde está para a literatura: na flor da idade. Prova evidente de que ambos são dotados de elevado QI, visto que somente os que possuem uma mentalidade inferior se fossilizam, como acontece com o batalhão de quadrados os chamados ultraconservadores que não admitem mudanças.  
-Sou da idade da pedra e se você achar pouco bote mais tempo. 
É assim que ela responde aos que lhe perguntam quantos anos tem. E em seguida diz um gracejo adequado à ocasião ou manda logo um apelido certeiro. 
-Vige, bicho, tu é ver um bacurau ... 
Mas o importante é que ela não faz isso para humilhar a pessoa. E sim para brincar, mexer com quem está quieto, pura e simplesmente. É exato que muitos apelidos surgiram dessas brincadeiras, mas não houve, de sua parte, intenção premeditada de rotular. Às vezes ela nega a autoria de um apelido que se tornou famoso, dizendo que o autor foi o Teófilo, seu irmão.  
- Nunca botei apelido em bispo. Em padre, sim, porém poucos. O Teófilo é que não respeitava patente. 

  

DELLA ROVERE TEMEU 

  

Castorina levou quase a vida toda fazendo café para intendentes e prefeitos de Aracati. Em reconhecimento a esse valioso trabalho, Ruperto Porto deu-lhe um emprego "proforma", na base do recibo por serviços prestados, com a remuneração de 250 cruzeiros antigos mensais. Os que vieram depois dele foram deixando a velha e dedicada cafezeira em paz, sendo que alguns concordaram em aumentar-lhe o ordenado, chegando hoje a 50 cruzeiros.  
-É dinheiro que eu vou abrir um banco.  
Aposentada por conta própria, ela veio morar em Fortaleza e ficou recebendo seu dinheirinho sem qualquer complicação. Mas quando Mário Della Rovere assumiu a chefia do município, o negócio engrossou pra cima dos funcionários da Prefeitura. Muitos foram demitidos e Castorina ficou sem receber pagamento. Passados cinco meses, a velha não aguentou mais e foi a Aracati. Teve sorte, porque o Della Rovere na ocasião estava muito cheio de encrencas e não quis arranjar mais uma, mandando pagar-lhe o atrasado. 
O sanitarista Della Rovere recuou na hora exata, pois do contrário teria pegado o maior apelido que Castorina já bolou, para largar em cima de uma incauta criatura. Solicitada a dar pelo menos uma dica, Castorina pediu calma. 
-Ele que se cuide, que o bicho está arquivado. Aproveitando a deixa, dissemos-lhe que Della Rovere 
fora um general italiano, da Segunda Guerra, que ficou famoso por ter sido representado por um ator que morreu porque pretendeu viver o personagem na vida real, resultando disso uma opereta bufa ainda hoje bastante apreciada na Itália, explicando, afinal, que qualquer semelhança é mera coincidência. 

  

FAMA QUE NADA RENDE 

 
Vivendo com uma filha de criação, numa casinha modesta da Rua Franklin Távora, Castorina atravessa urna fase difícil, que pode ser definida nesta frase:  
-Estou comendo o que o diabo enjeitou. Realmente, a velha e irrequieta cafezeira da Prefeitura de Aracati vive momentos de grande aperto, mas as queixas são feitas em termos de brincadeira, sem perder a esportiva. 
- Minha fama é grande, mas não rende nada. Ninguém manda nada pra mim. 
Isto ela diz rindo, sem qualquer sombra de amargura, parece até que ironizando a si própria. 
- Sou assim falante porque nasci no dia de uma trovoada. E não porque tivesse bebido água num chocalho, como disse o Chico de Jane. 
Chico de Jane, seu velho amigo, é o dono do bar Amansa Sogra e o maior folião do Aracati. Uma grande praça esse antigo e compreensivo delegado civil, parte integrante do folclore aracatiense. Delegado civil e perpétuo, pois em todo governo ele é mantido no posto. Seu lema não prender e às vezes soltar... 
Castorina gostava de festa, dançava bem, namorou muito, mas não casou "porque os diabos nunca quiseram casar comigo". E diz que se sente muito feliz por isso. 
-Pelo menos não sou viúva. 
Ela acha que fatalmente teria ficado viúva, visto que os seus irmãos já faleceram. Eram, ao todo, quinze irmãos, só restando ela.  
- Só ficou eu pra contar a história. 
A história de um passado faustoso, ainda agora podendo ser atestado pela arquitetura dos sobradões de Aracati, cujas fachadas são de azulejos da melhor procedência estrangeira. 


TEXTO DE EDMUNDO DE CASTRO  | FOTOS DE GERALDO OLIVEIRA. Transcrição feita a partir de uma fotocópia de matéria cujo periódico acreditamos ter sido publicado na década de 1970 na cidade de Fortaleza. No entanto não conseguimos precisar estas informações. 

 

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