Tem mar e rio, muitas pontes e porto movimentado. Isso é o seu fraco.
Posso dizer que me criei dentro d'água. Sou da água doce e da salgada ao mesmo tempo. Não me assombrei nem mesmo com a cheia de 24.
Ela se refere à enchente de 1924, quando Aracati foi totalmente inundada, ficando quase submersa. Ainda hoje tem lá o Alto da Cheia Grande, onde muita gente escapou de morrer afogada.
O AMIGO DESEMBARGADOR
-Eu não gosto de beber mas nesse dia entrei na Cumbe. Cumbe é a cachaça oficial de Aracati e caju é o tira-gosto de fé. O desembargador Ubirajara Carneiro foi promotor em Aracati, faz muitos anos. Ali fez uma grande amizade com Castorina, a quem o velho magistrado dedica especial atenção. Todos os domingos eles se encontram para uma conversa informal, o que ambos passaram a chamar "um domingo alegre". Insistimos, mas ela desconversou:
-O desembargador não tem.
Esse "não tem" significa apelido. Sem dúvida por respeito a uma velha amizade, mas a fonte não secou.
Pelo comum, quando uma pessoa chega aos sessenta anos vai logo tratando de se acomodar, achando que já deu o que tinha de dar e por isso mesmo o melhor é encostar as "chuteiras". Outras, entretanto. se bem que em número reduzido, mantêm-se em bom estado físico e mental depois dos oitenta, como ocorre com Castorina Chaves Pinto, a famosa Castorina do Aracati, atualmente com 88 anos bem vividos. Inteligente, alegre e jovial, ela está para o humorismo assim como Tristão de Ataíde está para a literatura: na flor da idade. Prova evidente de que ambos são dotados de elevado QI, visto que somente os que possuem uma mentalidade inferior se fossilizam, como acontece com o batalhão de quadrados os chamados ultraconservadores que não admitem mudanças.
-Sou da idade da pedra e se você achar pouco bote mais tempo.
É assim que ela responde aos que lhe perguntam quantos anos tem. E em seguida diz um gracejo adequado à ocasião ou manda logo um apelido certeiro.
-Vige, bicho, tu é ver um bacurau ...
Mas o importante é que ela não faz isso para humilhar a pessoa. E sim para brincar, mexer com quem está quieto, pura e simplesmente. É exato que muitos apelidos surgiram dessas brincadeiras, mas não houve, de sua parte, intenção premeditada de rotular. Às vezes ela nega a autoria de um apelido que se tornou famoso, dizendo que o autor foi o Teófilo, seu irmão.
- Nunca botei apelido em bispo. Em padre, sim, porém poucos. O Teófilo é que não respeitava patente.
DELLA ROVERE TEMEU
Castorina levou quase a vida toda fazendo café para intendentes e prefeitos de Aracati. Em reconhecimento a esse valioso trabalho, Ruperto Porto deu-lhe um emprego "proforma", na base do recibo por serviços prestados, com a remuneração de 250 cruzeiros antigos mensais. Os que vieram depois dele foram deixando a velha e dedicada cafezeira em paz, sendo que alguns concordaram em aumentar-lhe o ordenado, chegando hoje a 50 cruzeiros.
-É dinheiro que eu vou abrir um banco.
Aposentada por conta própria, ela veio morar em Fortaleza e ficou recebendo seu dinheirinho sem qualquer complicação. Mas quando Mário Della Rovere assumiu a chefia do município, o negócio engrossou pra cima dos funcionários da Prefeitura. Muitos foram demitidos e Castorina ficou sem receber pagamento. Passados cinco meses, a velha não aguentou mais e foi a Aracati. Teve sorte, porque o Della Rovere na ocasião estava muito cheio de encrencas e não quis arranjar mais uma, mandando pagar-lhe o atrasado.
O sanitarista Della Rovere recuou na hora exata, pois do contrário teria pegado o maior apelido que Castorina já bolou, para largar em cima de uma incauta criatura. Solicitada a dar pelo menos uma dica, Castorina pediu calma.
-Ele que se cuide, que o bicho está arquivado. Aproveitando a deixa, dissemos-lhe que Della Rovere
fora um general italiano, da Segunda Guerra, que ficou famoso por ter sido representado por um ator que morreu porque pretendeu viver o personagem na vida real, resultando disso uma opereta bufa ainda hoje bastante apreciada na Itália, explicando, afinal, que qualquer semelhança é mera coincidência.
FAMA QUE NADA RENDE
Vivendo com uma filha de criação, numa casinha modesta da Rua Franklin Távora, Castorina atravessa urna fase difícil, que pode ser definida nesta frase:
-Estou comendo o que o diabo enjeitou. Realmente, a velha e irrequieta cafezeira da Prefeitura de Aracati vive momentos de grande aperto, mas as queixas são feitas em termos de brincadeira, sem perder a esportiva.
- Minha fama é grande, mas não rende nada. Ninguém manda nada pra mim.
Isto ela diz rindo, sem qualquer sombra de amargura, parece até que ironizando a si própria.
- Sou assim falante porque nasci no dia de uma trovoada. E não porque tivesse bebido água num chocalho, como disse o Chico de Jane.
Chico de Jane, seu velho amigo, é o dono do bar Amansa Sogra e o maior folião do Aracati. Uma grande praça esse antigo e compreensivo delegado civil, parte integrante do folclore aracatiense. Delegado civil e perpétuo, pois em todo governo ele é mantido no posto. Seu lema não prender e às vezes soltar...
Castorina gostava de festa, dançava bem, namorou muito, mas não casou "porque os diabos nunca quiseram casar comigo". E diz que se sente muito feliz por isso.
-Pelo menos não sou viúva.
Ela acha que fatalmente teria ficado viúva, visto que os seus irmãos já faleceram. Eram, ao todo, quinze irmãos, só restando ela.
- Só ficou eu pra contar a história.
A história de um passado faustoso, ainda agora podendo ser atestado pela arquitetura dos sobradões de Aracati, cujas fachadas são de azulejos da melhor procedência estrangeira.
TEXTO DE EDMUNDO DE CASTRO | FOTOS DE GERALDO OLIVEIRA. Transcrição feita a partir de uma fotocópia de matéria cujo periódico acreditamos ter sido publicado na década de 1970 na cidade de Fortaleza. No entanto não conseguimos precisar estas informações.