Atualmente, a vila colonial do Aracati é uma cidade turística próxima de Fortaleza, não porque ela crescera, mas porque a capital cearense foi-se espraiando e as distâncias com o uso do automóvel foram-se encurtando. Antes, Aracati fora uma cidade de comércio. Era um entreposto comercial em razão do porto que lá existia e por onde desaguava parte da carne de sol do Ceará. Esse livro de Caminha é também depositário do próprio momento de sua publicação, quando o seu autor contava então com dezoito anos. Os poemas publicados nele foram escritos entre 1885 e 1886, o que evidencia um tempo de sua produção, apesar de os poemas “Melancolia” e “Ideal” datarem, respectivamente, de 15 e 23 de março de 1887, ambos escritos na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, portanto feitos no mesmo ano de publicação do livro, o que evidencia um encontro entre as datas de produção e edição.
Como já dissemos, o título ganhou um subtítulo – (primeiras páginas) –, possivelmente por sentir-se o então poeta inseguro em mostrar-se ao público e entregar-se às apreciações da crítica, amortecendo, desse modo, cobranças mais ferozes. Trata-se de um livro de poemas românticos. Tão romântico que Caminha somente com eles talvez não tivesse entrado na Padaria Espiritual, pois em um dos versos do poema intitulado “No campo” chega mesmo a falar em carvalho e cotovia, palavras que estavam proibidas no vocabulário dos Padeiros: “No tronco do carvalho/ abandonado, annoso/ desprende a cotovia um cantico amoroso”. A respeito do romantismo desse primeiro livro de Caminha afirmou Sânzio de Azevedo (1999, p.28):
É forçoso admitir que se trata de estréia bastante bisonha: o problema não se cinge somente ao fato de os versos serem extremamente românticos, quando já circulavam obras parnasianas, como as Sinfonias (1882), de Raimundo Correia, as Meridionais (1884) e os Sonetos e Poemas (1885), de Alberto Oliveira, sem se falar nas Canções Românticas (1878), desde (sic) último, não tão românticas, como se sabe. O problema é que Adolfo Caminha, cuja verdadeira vocação seria o romance, se nos versos que ainda haveria de compor, na década de 1890, jamais se alçaria à condição de poeta apreciável, muito menos nesses poemas de juventude.
Há nesse livro de Caminha duas epígrafes que abrem esses ditos poemas da juventude. Aliás, vale lembrar que Caminha falecera ainda jovem, talvez não para a sua época, em que os homens já aparentavam ser velhos bastante cedo. Como exemplo desse fato, vale lembrar aqui as figuras de José de Alencar e do imperador D. Pedro II. A primeira epígrafe, em francês, é da escritora George Sand; a segunda é do escritor português Almeida Garret. Assim, Caminha prenunciava nesse seu primeiro livro as duas possibilidades de diálogo que viria a ter ao longo de sua carreira como escritor: França e Portugal. As mesmas duas possibilidades de diálogo que esteve presente junto aos membros da Padaria Espiritual. De Sand lemos: “Si je passe pour fou, si je le deviens, qu’importe! J’aurai vécu dans uns sphère idéal, e [sic] je serai peut-être plus hereux que tous les sages de la terre”.2 De Garret, lemos: “Foi só meu coração que fez meus versos...”. Entre a loucura e os devaneios do coração foi onde se colocou o poeta iniciante, marcando, assim, a incerteza da qualidade daqueles versos que entregava ao público. E assim demonstrava aderir à estética romântica. Mais importante do que dizer que esse poeta ainda não era o Adolfo Caminha que conheceremos em seus romances é constatar que o poeta transitara pelo romantismo e que os escritores românticos, como o já citado José de Alencar, ainda eram referenciados em suas Cartas literárias, mais precisamente nos artigos “Novos e velhos” e “À sombra de Molière”, aquele de 1893 e este de 1894, quando A normalista, romance claramente naturalista, já estava publicado e circulando entre os leitores. O fato é que Adolfo Caminha viveu o período que Afrânio Coutinho chamou de “encruzilhada literária”, [...]. O final do século XIX caracterizou-se pela confluência de estéticas ao que Adolfo Caminha não passou incólume. A poesia romântica, o romance naturalista, a defesa de Cruz e Souza nos seus textos críticos são exemplos da experiência de viver entre estéticas literárias.
A escolha de George Sand pode indicar também o gosto de Adolfo Caminha pelas personalidades controversas e polêmicas. Gosto esse que se foi fazendo mais e mais presente em suas leituras como veremos ao tratarmos de autores que ele mesmo os considerou como “obscuros”. George Sand era romântica, porém já dotada de interesses pelo socialismo mesmo que romântico e utópico. Ela foi uma das primeiras mulheres a viver de seu trabalho como escritora, além, é claro, de tecer uma importante rede de relações entre os grandes nomes de sua época.3 Essa epígrafe de Sand traz também um certo gosto pelo afastamento, pela crítica aos estabelecido, a afeição ao louco como aquele que está fora da ordem, e por assim o estar se encontra em melhor situação, criando uma ordem própria. Trata-se de uma leitura romântica da loucura, que equipara o louco ao gênio. Esses gostos parecem também ter acompanhado Adolfo Caminha ao longo da escrita de sua obra.
No caso do escritor português, sabemos que Garrett foi um dos iniciadores do romantismo em seu país com a publicação, em 1825, em Paris, de Camões. Dizemos um dos iniciadores, pois Saraiva & Lopes (1975, p.741) preferem dar a primazia do feito a Alexandre Herculano com A voz do profeta. Questão de primazia à parte, o que nos interessa é reforçar a aproximação de Adolfo Caminha com a estética romântica, a mesma que ele em alguns momentos fez questão de combater, servindo-lhe até mesmo como aspecto de formação de personagem como o foi, por exemplo, com o José Pereira no seu romance A normalista. Segundo lemos, essa personagem escrevia “contos femininos em estilo 1830” (Caminha, 1998, p.71) numa referência aqui ao romantismo, valendo justamente lembrar que é de 1836 que a historiografia literária brasileira data o início dessa estética literária com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães. Mesmo criticando a estética romântica, Caminha não deixou de cultivá-la ou de lhe reconhecer os seus valores.
Infelizmente, não sabemos ao certo de quais obras são essas duas epígrafes; porém, ainda assim, elas evidenciam a ligação de Caminha com a estética romântica o que se repete ao longo da sua obra, denotando haver uma coerência entre elas e o conteúdo. No interior do livro, encontramos um poema intitulado Margarida, numa referência direta a A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. O poema de Caminha, que é formado por três partes, – “Em Pariz”, “No Campo” e novamente “Em Pariz” – como se essas fossem três atos de uma peça teatral, traz como personagens Margarida e Armando como numa referência à peça e ao romance no qual encontramos Marguerite Gautier e Armand Duval como protagonistas. Esse poema de Caminha traz uma epígrafe de Victor Hugo – “N’insultez jamais une femme qui tombe!”4 – e uma outra de Boileau, essa infelizmente ilegível em razão da péssima qualidade de impressão do livro.
Victor Hugo, porém, não figurou somente com uma epígrafe. Seu nome é o título de um poema escrito por ocasião de sua morte e traz como epígrafe esse verso de Castro Alves: “Mestre do mundo! Sol da eternidade!...”, que faz parte do poema “Sub Tegmine Fagi”, de 1867, do livro Espumas flutuantes. Nesse poema de Castro Alves (1960, p.101) lemos: “Irei contigo, pelos ermos – lento – / Cismando, ao pôr do sol, num pensamento/ Do nosso velho Hugo/ – Mestre do mundo! Sol da eternidade!.../ Para ter por planêta a humanidade,/ Deus num cêrro o fixou” (grifo nosso). Esse é o primeiro indício de leitura da obra de Castro Alves que encontramos na obra ficcional de Adolfo Caminha e não será o único, como veremos adiante. Voltaremos ainda a esse poema e à sua relação com As bucólicas, de Virgílio ao tratarmos neste capítulo dos contos de Adolfo Caminha.
O poema de Caminha remete à ocasião em que estando ele discursando diante do Imperador D. Pedro II na Escola de Marinha, justamente para lembrar da morte daquele poeta francês, lamentou que esse não pudesse ver o Brasil transformado em uma República. Em “Notas do final do livro” lemos: “Os versos á Victor Hugo foram escriptos por occasião da morte do autor dos ‘Miseraveis’, ainda sob a dolorosa impressão do programma que annunciava á capital do Império o passamento do immortal poeta francez” (Caminha, 1887a, p.40). Mas se a recorrência dos autores românticos é exemplo de permanência, há nesse livro exemplos de ruptura ou, pelo menos, do início dela com a estética citada ou com uma face sua e reconhecimento de que o romantismo teria outros rostos como por exemplo o gótico.
Desse seu primeiro livro vale ainda destacar o seguinte fato: ele já apontaria para uma das características de Adolfo Caminha como autor naturalista: a preocupação com a referencialidade, sobretudo uma referencialidade trágica como encontramos no poema intitulado “A creança suicida”, que abaixo transcrevemos:
A creança suicida
Pobre creança!... Pobre... Um pensamento impuro
apagou-te da mente os sonhos infantis...
Quanta dôr! quanto amor no teu semblante puro
ao ver-te só no mundo entregue aos homens vis!...
E um dia a sociedade, esse vampiro enorme,
que o sangue chupa ao justo e poupa a tyrannia,
essa ave negra, vio-te, arroxeado e informe,
o corpo de creança, a alma... já não via!...
Como era triste o quadro! A bocca se entreabria
como s’inda quizesse um ai! Soltar ao mundo.
A negra multidão te olhava e parecia
tocada de pavor e de um odio profundo!
Via-se em cada rosto um riso de ironia,
como desafando os céos e o mundo inteiro.
Uma creança loira os labios entreabria
e apontava sorrindo o corpo do caixeiro!...
E o corpo, já sem vida, o vento balouçava!
Era como uma lampada sombria, negra,
alumiando o povo... A multidão seismava
e ouvia-se distante a voz da tontinegra...
Dezembro, 1885.
Mais uma vez nas ditas “Notas” lemos a respeito desse poema:
“A creança suicida”. Esta poesia lembra um facto acontecido no Rio de Janeiro em fins de 1885 e que muito horrorisou a Côrte do Império. A imprensa referio-se unisona a esse acto talvez inocente de uma creança que apenas estrava na vida. Eis a carta deixada pelo pobresinho:
“Eu vou dizer o que sinto dentro do meu coração. Eu vou fazer uma asneira, conheço que é, mas é por causa de eu pensar de [...] e de meus irmãos. Eu estou empregado trabalhando para uns e outros, de graça, e eu sem lenços para assoar, sem botinas para calçar, sem dinheiro para o bond. E uma vez vim a pé da [...] Real Grandeza, em Botafogo, á rua Sete de Setembro n. 119. [...] isso... bem pensado, não e para se ter pena e doer o coração? depois de ver meus irmãos desgraçados, sem ter, coitados, roupa [...] vestirem e sabe Deos sem comida para comerem, coitados. E eu lembrando disto tudo e mão tendo para socorrer não tenho coragem de vel-os nesta triste miseria e por isso mato-me porque não [...] em mais nada e o mais adeos.
“Lembrança a quem por mim perguntar.”
Esta carta foi publicada pelo “Diario de Notícias” de 6 de dezembro. A creança que tinha 13 annos chamava-se José Alves de Castro. (ibidem)
O aspecto trágico do poema parece ter exigido de seu autor uma justificativa, uma explicação. Transformar um fato até então impensado – o suicídio de uma criança – em poesia exigiu do poeta um forte amparo na referencialidade, o que fez que ele recorresse aos jornais e ainda trouxesse à cena a fala de sua “personagem”. Talvez, o fato trágico carecesse de referencialidade para ser aceito como representação. O gosto pelo trágico, sobretudo ao dar à sociedade a imagem de um vampiro, bem como o ambiente e as imagens agourentas parecem se manter ao longo da obra de Caminha, destacadamente em seu romance Bom-Crioulo, cujo primeiro capítulo traz, segundo Leonardo Mendes, fortes traços do estilo gótico, que é também um modo de representação do romantismo.
Ainda segundo Mendes (2000, p.122), o gótico é:
Originário do romance sentimental, o gótico surge das narrativas românticas de terror. O gótico romântico trata da condição atormentada de uma criatura suspensa entre os extremos da fé e do ceticismo, da beatitude e do horror, do ser e do nada, do amor e do ódio. O ser gótico tragicamente dividido revela o rio barroco subterrâneo que atravessa a província romântica, unindo ambos na mesma revolta contra a ordem clássica. Ao combinar o terror com o horror e o mistério, as narrativas góticas criam uma atmosfera de apreensão...
Talvez esse poema seja o ápice do trágico nesse livro de Caminha. Todo o livro é marcado por passagens trágicas, desde a dedicatória à sua mãe já falecida, bem como nos poemas “Tristeza no lar”, “Melancolia”, “Aquelle lenço” e “Convalescente”, mas também respingando nos demais poemas, uns mais outros menos. Concluímos a abertura desse pacote da biblioteca de Caminha por dizer que os indícios aqui apresentados nos possibilitara conhecer um pouco de Adolfo Caminha como autor-leitor e, notadamente, o seu diálogo com a literatura romântica com a qual as histórias da literatura que registram o seu nome e os títulos da sua obra pouco o identificam ou o fazem a modo de exceção ou de outra rubrica, a nosso ver, pouco esclarecedora. Esse diálogo não cessa em seu primeiro livro, pois ele se estende para o segundo como veremos [...].
Bezerra, Carlos Eduardo de Oliveira. Adolfo Caminha : um polígrafo na literatura brasileira do século XIX (1885-1897) - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009. p. 331-337.
- “Se eu passo por louco, se eu me torno louco, que importa! Eu teria vivido em uma esfera ideal e seria talvez mais feliz que todos os sábios da terra” (Tradução nossa).
- Cf. Le Robertdesgrands écrivains de la langue française (2000, p.1252-9). Dictionnaire Encyclopédique de la Littérature Française (1999, p.938-9). Ambrière (1990, p.435-41).
- “Não insulteis jamais uma mulher que cai!” (Tradução nossa).