Aracati

Sunday, 14 February 2016 21:20

ARACATI | PRIMEIRO DESASTRE DE AVIAÇÃO NO CEARÁ

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Fortaleza estava como em dia de grande festa. Milhares de pessoas enchiam as ruas da cidade, com o olhar perscrutando o infinito, naquela luminosa manhã de junho. Ninguém queria perder o espetáculo. 

Não era a primeira vez que um hidroavião iria passar pela Capital do Estado. Antes, um desses aparelhos já cruzara os céus de Fortaleza, dirigido pelo cearense Pinto Martins, um dos participantes do arrojado "raid" New York-Rio e que, posteriormente teve um fim tão deplorável, suicidando-se na então metrópole do país. 

 

O acontecimento que se aguardava não apresentava, é evidente, aspecto de ineditismo, mas despertava no seio da população um interesse popular plenamente natural naquela época, em que o mundo atravessava a fase do pioneirismo na aviação. 

  

Já era meio-dia, mais precisamente, 12h20min, quando foi divisado o hidroavião. O povo não se conteve em manifestações de transbordante alegria. Gritavam os mais exaltados, quase todos acenavam com as mãos. 

  

O "Junkers 218", que voava de este para oeste, a pequena altura, não demorou que desaparecesse no horizonte. Foram curtos, mas intensos momentos de vibração. 

  

Nas proximidades do armazém Frota Gentil, foi lançado do "hidroavião" um envelope. Populares apanharam-no e não procuraram saber a quem se destinava. Abriram-no sem mais nem menos. 

  

Logo se verificou que era uma mensagem do Prefeito de Camocim, onde o aparelho descera na véspera e ali pernoitara, endereçada ao seu colega de Fortaleza, Sr. Adolfo Siqueira. E assim estava redigido: "Ao Sr. Prefeito de Fortaleza e ao povo da Capital do Estado, o Prefeito de Camocim saúda e recomenda os bravos tripulantes do Junkers D. 218. Camocim, 25 de junho de 1923. a) Francisco Nelson Pessoa Chaves". 

  

EM ARACATI 

  

Às 1h30min, o hidroavião descia no "Jaguaribe", em frente a Aracati. Poucas vezes se terá visto na cidade ou redondezas tanta gente reunida como naquele dia. Até parecia que a população toda se deslocara para as margens do rio, a fim de poder ver de perto o pássaro metálico e os dois jovens que temerariamente se afoitavam pelos ares. 

  

Ali estavam o Prefeito, o Vigário, o Juiz; o Promotor; o Delegado, as figuras mais gradas de Aracati como as de condição mais humilde. Calculou-se a mole humana em 10 mil pessoas. 

  

Os sinos das igrejas repicaram festivamente, anunciando aos quadrantes o fato raríssimo e muito honroso: um hidroavião em Aracati. 

  

Os aviadores foram acolhidos com cativantes demonstrações de simpatia e regozijo. Às frenéticas aclamações "Viva a Alemanha", com que o povo os saudava, respondiam com o riso aos lábios: "Vive le Brasil". 

  

Hermann Mueller, com 27 anos, e Werner Junkers, com 21 anos, este, filho do fabricante de aviões que tomou o seu nome, empreendiam o raid Havana-Rio de Janeiro-Buenos Aires. 

  

De Cuba, saíram dois aparelhos, a 22 de janeiro do ano que corria. O outro era dirigido por Willy Thill. O infortúnio colheu-os, porém, na bacia do Marajó, em Belém do Pará. No desastre, que então ali ocorreu, perdeu-se um dos hidroaviões, justamente aquele em que estava Willy Thill, que morreu na ocasião. 

  

Hermann e Werner não se deixaram abater pelo insucesso. Prosseguiram no reide, Depois de escalarem em São Luís, no Maranhão, e Camocim, estavam em Aracati. Dentro em pouco, rumariam para o Rio Grande do Norte. Pelo plano de viagem, pretendiam dormir no cabo São Roque, em seguida, desceriam no Recife. 

  

O "Junkers D. 218" tinha 18 metros de envergadura e, cada asa, 9 metros de comprimento e 3 de largura. Pesava 1.040 quilos. Acionava-o um motor tipo BMW, da força de 185 cavalos, com 6 cilindros e magnetos. Possuía 4 tanques, que comportavam 300 litros de gasolina, o que lhe assegurava, autonomia de voo de mil quilômetros. A sua velocidade atingia até 140 quilômetros por hora. A hélice media 3 metros e dava 1.400 rotações por minuto. 

  

O DESASTRE 

  

A permanência em Aracati foi de apenas duas horas. 

  

Mueller e Werner tinham pressa, porque desejavam alcançar o Cabo São Roque ainda com a luz do dia. Não aceitaram, sequer, alimentação. Às 3h25min, o "Junkers D. 218" levantava voo. Não demorou que acontecesse o inesperado, ante o olhar atônito da multidão que se comprimia à beira do "Jaguaribe". 

  

Por um acidente no motor, ou porque a hélice se tenha partido, segundo a opinião de outros, ao tentar fazer uma curva, o certo é que o hidroavião se precipitou no solo, perto do chamado porto das barcas. 

  

Ouviu-se, então, forte explosão, seguida de um incêndio devorador. 

  

Tudo indica que a causa do sinistro haja sido mesmo a hélice que se tenha quebrado, pois um dos seus pedaços foi encontrado distante do local onde caiu o hidroavião. 

  

A muito custo, as chamas foram dominadas. A água não surtiu efeito; o povo valeu-se da areia ali abundante. Mas, quando o fogo se extinguiu, em meio ao que restava do "Junkers D. 218", jaziam os corpos carbonizados dos infortunados aviadores. 

  

À alegria contagiante de minutos antes, seguiu-se uma tristeza geral, bem reveladora da profunda consternação que a todos dominava. E não era para menos. Quem haveria de supor, entre aquela gente simples e despretensiosa, que Aracati seria teatro de tamanha tragédia? 

  

Providenciou-se imediatamente à preparação dos autos de identidade e procedeu-se ao exame cadavérico, servindo como peritos os farmacêuticos João Adolfo Filho, também Delegado, e Miguel Ramalho e o Dr. Henoch Nogueira, Juiz substituto. 

  

As autoridades policiais fizeram o arrolamento do que ainda foi possível encontrar, registrando, de Hermann Mueller: um relógio de ouro, marcando a hora exata do desastre: 3h27min; uma pistola Mauser, um anel, uma carteira com fotografias, caderneta de identificação, documentos, telegramas e cartas; de Werner Junkers: um relógio de algibeira inutilizado, um botão de punho, um pente, pequeno livro de notas, diversos mapas, papéis quadriculados com desenhos do aparelho feitos a lápis, uma cédula de 2$000 inutilizada, dois contos e seiscentos e trinta e nove mil réis em cédula de 200 a dois mil réis, moedas de prata da Venezuela de diversos valores e algumas moedas de ouro norte-americanas. 

  

HOMENAGENS 

  

O Prefeito Municipal, Cel. Antônio Leôncio, decretou feriado por dois dias, em sinal de pesar pelo infausto acontecimento. Os corpos dos aviadores alemães foram expostos, em câmara ardente, no edifício do Legislativo de Aracati, sendo velados, por grande parte da população, durante o resto da tarde e a noite toda. No dia seguinte, pela manhã, realizou-se o sepultamento, no Cemitério de São Pedro. 

  

Antes de sair o féretro da Câmara Municipal, falou o advogado César de Morais Fontenele. Apresentou o adeus da cidade aos aviadores prematuramente desaparecidos. 

  

Os caixões eram de primeira classe. Cobriram-nos flores em quantidade. Viam-se várias fitas com esta expressão: "Lembranças da família aracatiense”. Da Câmara Municipal ao Campo Santo, uma banda de música tocava marchas fúnebres. 

  

No cemitério, antes dos corpos baixarem à sepultura, discursaram, em tocantes palavras, os Drs. Henoch Nogueira, Juiz substituto, e Joaquim Moreira de Sousa, Promotor de Justiça. 

  

Não houve ofícios religiosos da Igreja Católica, porque os aviadores professavam o Protestantismo, conforme atestavam declarações da caderneta de identidade. 

  

Por muito tempo, no dia 2 de novembro, data consagrada aos mortos, mãos piedosas ornamentaram com flores as duas cruzes que assinalavam a sepultura de Hermann Muller e Werner Junkers. 

  

FORTALEZA COMOVIDA 

  

A notícia do sinistro chegou a Fortaleza através de telegramas para o Governador de então, Sr. Ildefonso Albano, ao Prefeito e outras personalidades. Logo se tornou pública, mostrou-se muito comovida a população da Capital, que pouco antes aplaudira com tanto entusiasmo os bravos aviadores. 

  

O Sr. Oscar Hulland, Consul alemão no Ceará, telegrafou à Embaixada no Rio de Janeiro, comunicando-lhe o doloroso episódio, que chocou de maneira tão viva a alma sensível da gente cearense. 

  

O "Correio do Ceará", jornal de Fortaleza, então dirigido por A.C. Mendes e que tinha Leonardo Mota como Redator-Chefe, abria a sua edição de 26 de junho com editorial em que dizia: 

  

Felizes quando contentes e descuidosos, evoluindo sobre o casario de Fortaleza, correspondiam ao saudar da multidão que os vitoriava, não imaginaram aqueles valentes que as flechas esguias de nossos templos, as ruas retilíneas e os jardins da capital cearense fossem a fisionomia da derradeira grande cidade que avistavam. 

Retivemos o último adeus desses valorosos dominadores do céu de tantas pátrias e, por isso, a alma, se nos enlutou, à notícia da catástrofe. 

Abra-se o chão do Ceará e recolha piedosamente os despojos dos destemidos aviadores, os primeiros que a nossa terra, acolherá no seu seio fecundo. O sangue desses heroicos europeus enrubesce, de orgulho o solo americano em que foi vertido, numa generosa façanha em prol da CIVILIZAÇÃO. 

Ajoelhamo-nos, reverentes, ante os sete palmos de cada uma das tumbas que vão guardar, no coração da terra cearense, os magníficos e alados viajores a quem a MORTE fulminou, mas cujos nomes hão de resplandecer, por todo o sempre, no martirológio dos pioneiros de uma das mais esplêndidas conquistas da Humanidade. 

  

MONUMENTO 

  

Um ano e pouco depois, erigia-se em Aracati um monumento aos dois ases da aviação, que perderam a vida como autênticos e legítimos pioneiros. 

  

À entrada da cidade, na rua Conselheiro Liberato Barroso, lado sul, foi levantada, uma bela coluna de mármore branco, da Itália, de três e meio metros de altura, em que se liam os seguintes dizeres, em alemão e português: "A memória dos aviadores alemães que morreram aqui no voo Cuba-Rio de Janeiro — Werner Junkers, Hermann Muller e Willy Thill". 

  

A iniciativa da tocante homenagem coube a um grupo de admiradores dos jovens sinistrados, em movimento que contou com a colaboração das colônias alemãs de Belém, São Luís, Fortaleza e Rio de Janeiro. 

  

Por vários anos, o povo de Aracati conservou com muito carinho o monumento, verdadeira obra de arte, que enriquecia o patrimônio da cidade e que, pelo seu valor, veio a figurar em coletânea organizada pelo Ministério da Educação. 

  

Mas, no dia 14 de agosto de 1942 —, ao tempo da guerra contra o Eixo, no momento da partida para Fortaleza da primeira turma de reservistas aracatienses, elementos exaltados demoliram a coluna de mármore. Nos ruidosos protestos contra a Alemanha de Hitler esquecia-se o que significara, na história da aviação, o sacrifício cruento de Hermann Muller e Werner Junkers. 

  

 


  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

ARARIPE, J.C. Alencar — "Um reide internacional marcado pela tragédia." In: O Povo — Fortaleza, 07 de janeiro, 1958. 

EDITORIAL sobre a morte dos aviadores alemães. In: "Correio do Ceará" Fortaleza, 26 de junho, 1923. 

 

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