Assim começa o parecer do promotor de justiça de Aracati Dr. Ubirajara Carneiro, ao relatar o perverso crime ocorrido em Aracati, no dia 13 de abril de 1951, uma sexta-feira, às 9 horas da manhã, na Praça do Mercado denominada à época Jardim Cel. Figueiredo[1].
O sargento Mario Cesar de Souza estivera em Aracati como radiotelegrafista ao tempo que aqui havia uma estação da Polícia Militar do Estado.
Reformado, resolveu aproveitar da histórica hospitalidade do povo aracatiense para permanecer entre nós fixando residência em nossa cidade. Alguns poucos que o conheciam e tinham algum tipo de relação com ele, sabiam que esse novo residente de Aracati, não gozava de um bom conceito no meio da corporação militar a que servira. Sua reputação como militar era conhecida como desleixado, preguiçoso e indisciplinado, além de “instintivamente mau”.
Acomodara-se numa choça na Travessa Menezes Pimentel[2], na Praça do Mercado, onde vivia anonimamente. Praticava seus vícios, levando uma vida desregrada sem que ninguém lhe desse nenhuma importância, nem lhe pedisse conta do seu descomedimento. Era um tipo tímido, porém presunçoso, que poucos visitavam e, para aqueles que o faziam, contava histórias de suas façanhas para impor medo e receio nas pessoas do seu relacionamento, no encolhido ambiente em que vivia. “Referia-se com gabolice aos crimes que já teria cometido e sem reservas nem constrangimento descrevia com pormenores a quem lhe ouvia, as cruentas lutas em que se envolvera primando sempre por finalizar sua bravura e seu destemor diante do perigo.”
Suas “sinistras narrativas” pouco interesse causavam àqueles acostumados a escutar o sargento Mario arrotando bravatas. Ninguém acreditava muito naquelas histórias. Entretanto, ninguém jamais poderia imaginar que aquele homem solitário que tocava bandolim acostumado a beber assiduamente pelo prazer do vício da bebida, fosse um criminoso em potencial.
As palavras do promotor de justiça em seu parecer de acusação revelam claramente a personalidade daquele cruel assassino: “O instinto criminoso aflorou com toda sua perversidade naquela manhã de 13 de abril de 1951. Os maus fados numa conjuntura de estarrecedora e incompreensível crueldade fizeram recair sobre a desgraçada popular Raimunda Correia da Silva, que arrastando a sua miséria e o seu infortúnio, atravessara o seu caminho no momento exato em que o vulcão oculto na alma tenebrosa do homicida vomitava as lavas candentes de sua sanha sanguinária.”
Naquela manhã, cedo, o sargento Mario saíra de sua morada, como dissera posteriormente em seu interrogatório, decidido a matar. Os motivos que lhe impulsionavam nesse sentido ainda são nebulosos e não foram bem esclarecidos. No entanto, antes de cometer o crime contra a mendiga Raimunda, o sargento Mario nessa mesma manhã tentara, e por pouco não conseguira êxito na façanha, assassinar Dona Francisca Moreira de Souza. Conhecida por Dona Chiquinha Madame, que possuía um pequeno salão de beleza nas proximidades da pensão onde vivia o sargento Mario, e por quem ele, diziam os populares à boca miúda, nutria uma forte paixão não correspondida. Seria a vítima que ele havia escolhido com determinação para saciar sua necessidade, sua “sede de sangue.”
Depois de percorrer os lugares onde poderia encontrar Dona Francisca Moreira, embalde foram suas incursões nessa caçada criminosa, pois por graça de Deus ou forte desígnio do destino, Dona Chiquinha Madame, como era carinhosamente tratada, resolvera não sair à rua naquela manhã.
Frustrado em seu intento, o celerado sargento Mario tomou o rumo do mercado público entrando pelo portão central da rua Cel. Pompeu, atravessando todo o mercado, portando à mão uma afiada peixeira disfarçada num embrulho, como se buscasse uma vítima para concretizar seu desejo criminoso, como havia planeado, matar alguém naquela manhã.
Estava impaciente ao chegar à praça do mercado, bem próximo ao busto do Cel. Figueiredo, segundo denúncia do promotor, por ainda não ter cometido o crime que planejara, quando viu se aproximar Raimunda Correia que lhe estendendo a mão mirrada pela fome pediu uma esmola: “Senhor uma esmola pelo amor de Deus!!! Senhor!! Senhor”!!
A narrativa do promotor em seu parecer de acusação descreve a crueldade e a frieza de um assassino impiedoso e perverso: “A velha defronta-se com seu desalmado matador que sem articular palavra trava-lhe o braço faraonicamente magro e, sem que a vítima esboce um gesto de defesa, desfecha-lhe quatro violentos golpes, rematados por uma punhalada em pleno coração”.
E concluindo indignado, tomado de emoção e repulsa, o promotor finaliza seu parecer com essas comoventes palavras: “O braço do carrasco não tremeria nem se imobilizaria ao consumir o martírio... E a velha mendiga Raimunda atraiçoada e indefesa tomba sem vida” ...
Consumado o ato de barbaridade, o malvado se dirigiu a mercearia do senhor Chico Adrião[3], na Travessa Cel. Valente, onde se homiziou tentando se livrar da prisão em flagrante.
Impactante para as autoridades policiais e judiciárias foram o depoimento e o subsequente inquérito em que o delinquente, com revoltante indiferença “disse que não tinha motivo algum para assassinar a vítima, a quem nem sequer conhecia”.
O laudo acusatório assim termina: “O acusado que bem pode ser inscrito entre os criminosos cínicos, não deformou suas recordações e, ao contrário, descreveu com calma e profunda segurança todos os lances do delito que praticou e do qual não sente nenhum remorso”.
Um fato revoltante que causou repulsa e deixou enraivecida a população do Aracati, aconteceu pouco tempo depois do assassinato da velha mendiga Raimunda. Seus dois filhos apelidados de “Lua e Doutor” que trabalhavam como vareiro no pontão transportando gente e carro do porto Monteiro para o porto José Alves, no outro lado do rio, como faziam com todos os passageiros, tomaram nos braços o Sargento Mario, o cruel assassino de sua mãe, carregando-o para que não molhasse os pés ao embarcar no pontão, quando de uma das suas idas a Fortaleza, logo depois do bárbaro crime por ele praticado.
O povo considerou “aquilo” uma atitude covarde, uma fraqueza dos dois irmãos. O povo esperava que a justiça viesse em forma de vingança. Entretanto, a humildade dos dois irmãos, reles trabalhadores braçais, os impediu de perpetrar, de consumar uma justa desforra, e fraquejaram diante de um assassino transfigurado num agente da lei.
[1] Praça Inaugurada pelo Prefeito Mario Lima em 1944, demolida pelo Prefeito Armando Rocha para construção do atual Mercado Novo.
[2] Atualmente Travessa Tabelião João Paulo
[3] Prédio onde atualmente funciona a Loja Dimola