A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL: O CASO DE ARACATI*
A Constituição da República, em seus artigos 215/216, traça os parâmetros da garantia aos brasileiros do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional. Outrossim, o texto constitucional define como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entre esses bens estão os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Na verdade, os direitos culturais possuem uma dimensão de direitos fundamentais (segunda geração) e merecem especial proteção por parte do Estado e da sociedade. Neste sentido, trazemos para o debate com a sociedade cearense o caso do conjunto arquitetônico da cidade de Aracati, nascida Vila de Santa Cruz de Aracati, Porto de Barcos do Rio Jaguaribe, por alvará de D. João V, datado de 11 de abril de 1747.
Aracati, ao lado de Icó e Sobral, formam um conjunto de cidades de fundamental importância para a compreensão de nossa história, pois, em decorrência de suas localizações estratégicas, foram os principais eixos de desbravamento do sertão cearense. As ruas, praças e sobrados dessas cidades são uma aula de história e devem contar com uma política permanente de preservação. As cidades de Sobral e Icó estão com seus sítios históricos preservados, tendo a última recebido investimentos do Projeto Monumento do Ministério da Cultura e do Governo do Estado, que possibilitaram um verdadeiro renascimento da urbe. Como ficou lindo o largo do Théberge! E Aracati? Qual a situação de seu sítio histórico tombado? Uma lástima, um verdadeiro estado de abandono.
Apesar do tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o conjunto arquitetônico da cidade vem sofrendo uma série de atentados, seja pela omissão do Estado (União, Estado e Município), bem como pela ação predatória da própria população. O sítio histórico tombado ocupa uma área de aproximadamente 154.824 m², agrupando um total de 275 imóveis particulares e públicos, entre unidades residenciais, de comércio ou serviço, fabris e institucionais. Ao seu redor foi estabelecida uma zona de amortecimento dos prováveis efeitos negativos oriundos do desenvolvimento urbano, a chamada área do entorno que ocupa aproximadamente 786.151m² e concentra um total de 1.157 imóveis.
O saudoso Hélio Ideburque Carneiro Leal, sócio fundador e ex-presidente do Instituto do Museu Jaguaribano, escreveu um precioso livro “Singelo Documentário de Alguns Atentados ao Patrimônio Cultural da Cidade de Aracati 1940-1994”, UNIFOR,1995, que é de leitura obrigatória para a compreensão da questão. A leitura nos traz um sentimento misto de revolta, tristeza e, contraditoriamente, ânimo. Revolta e tristeza porque aponta quanta beleza já foi destruída ou descaracterizada, como por exemplo, os casos da Praça Cruz das Almas, local onde nasceu a cidade: de um espaço público amplo, “instalada em 1748, com 6.090 braças quadradas, está reduzida, hoje, 1990, a 110m²”; e a demolição do Solar das Correias, casarão do século XIX com frontispício em estilo colonial e ilustrado com azulejos portugueses, fato ocorrido em 1980 e registrado em matéria do jornal “O Povo”, edição de 7 de novembro de 1980. O ânimo vem da convicção de nossa responsabilidade pelo que restou e sofre constante perigo. Hoje vários prédios do sítio histórico encontram-se em péssimas condições. O Teatro Francisca Clodilde, antigo Cine Teatro Moderno São José, na rua Cel. Alexanzito (Rua Grande) corre risco de desabamento do teto, fato já informado ao IPHAN e à Prefeitura.
Diante desta situação, o Ministério Público não poderia ficar omisso, assim foi instaurado um Procedimento Administrativo para aprofundar o conhecimento do problema a fim de buscarmos soluções. Após tomar conhecimento da área tombada, resolvemos realizar uma mesa-redonda que contou com a participação do IPHAN, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Município de Aracati, Câmara Municipal, Clube dos Diretores Lojistas-CDL, Universidades, Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, Cáritas, igrejas e comunidade de um modo geral e, em particular, os moradores da área tombada.
O evento foi muito enriquecedor e trouxe vários elementos para fundamentar a ação do órgão ministerial na defesa do Patrimônio Histórico da cidade de Aracati.
Neste momento, estamos buscando o diálogo com as três esferas do poder com o intuito de firmarmos Termos de Ajustamentos de Condutas (Lei da Ação Civil Pública).
Vejamos os pontos principais:
1º) IPHAN: (a) Instalação de um escritório técnico do órgão na cidade de Aracati; (b) Retomada e conclusão da restauração da sede do Museu Jaguaribano (sobrado do Barão de Aracati). Vale ressaltar, que esta obra se arrasta há anos, enquanto o acervo do Museu encontra-se em um galpão inadequado.
2º) ESTADO DO CEARÁ (SECULT): (a) Elaboração e efetivação de uma política estadual de requalificação/restauração e preservação do sítio histórico; (b) Retomada e conclusão da restauração da sede da Biblioteca Municipal, obra de responsabilidade do Estado do Ceará.
3º) MUNICÍPIO DE ARACATI: (a) Elaboração e efetivação de uma política de requalificação e preservação do sítio histórico da cidade; (b) Retirada (transferência para área adequada) dos quiosques existentes no Largo da Matriz e demais logradouros próximos aos bens tombados.
4º) COELCE E CAGECE: Adequação, sob orientação do IPHAN, dos medidores de energia elétrica e de água dos imóveis da área tombada.
Foram ainda enviados ofícios com cópia do relatório da mesa-redonda às seguintes autoridades: Ministro da Cultura, Governador do Estado, parlamentares federais e estaduais e secretários estaduais. Ao ministro Gilberto Gil, solicitamos o atendimento das seguintes demandas: (a) A inclusão do município de Aracati em ações e obras do Projeto Monumenta; (b) A instalação do escritório do IPHAN na cidade de Aracati e (c) A retomada e conclusão da restauração da sede do
Museu Jaguaribano (Sobrado do Barão de Aracati).
É óbvio que a questão da preservação patrimonial é complexa, pois envolve muitos interesses sociais, além do liame estabelecido com a temática da ordenação urbana, mas contamos com a sensibilidade de todos para o bem da preservação de nossa memória. Em novembro próximo, o Museu Jaguaribano estará completando 40 anos de existência e, que Deus permita, haja motivos para comemorar.
*Alexandre de Oliveira Alcântara é Promotor de Justiça em Aracati e sócio efetivo do Instituto do Museu Jaguaribano