Aracati

Friday, 26 February 2016 23:58

ARACATY

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Aracaty é denominação de um vento e de uma brisa. Correm ambos pelo norte do Brasil ou, melhor, por determinadas regiões do Ceará. No vale do Jaguaribe, por exemplo, o vento aracaty sopra geralmente na direção nordeste-sudoeste, “com alguma violência”, e aparece ao cair da tarde, durante o estio. Em Icó, entretanto, o aracaty perpassa “como brisa mansa que vem do mar”. 

Da aplicação do termo a correntes aéreas diversas, provieram confusões e até contendas mais ou menos literárias entre os estudiosos desses assuntos. Querem alguns que o aracaty seja sempre vento rijo e desagradável, ao passo que outros, mais românticos talvez, a pés juntos afirmam que o inocente aracaty é brisa amena e salutífera... 

Afirmam, citam testemunha, apelam para os habitantes das zonas varridas com rudeza ou bem bafejadas com meiguice pelos aracatys, e continuam aferrados aos seus pontos de vista sem a mínima concessão de parte a parte. 

Por isso, por falta de exame sereno da questão e por falta de um pouco de boa vontade, dão uns por estabelecido definitivamente que aracaty é o vento rijo e desagradável e, outros, por definitivo também, que aracaty é brisa leve e agradável. 

Situados em extremos, afastam toda possibilidade de se tocarem um dia. 

Não desejando, em absoluto, quebrar a resistência de uns ou de outros, vamos, mesmo sem licença de qualquer deles, abrir um pequeno inquérito sobre o caso. 

Temos por certo que, em ambos os grupos há um pouco de razão, como temos por assentado que aracaty pode, ao mesmo tempo, denominar vento rijo e brisa leve. Estamos ainda convencidos de que há um busílis atrapalhando os textos e um qui-pró-quó azedando as contendas. 

Lemos cuidadosamente as asserções e pesamos com muita limpeza as razões apresentadas pelos defensores do aracaty rijo, e pelos que só compreendem um aracaty saudável... 

Verificamos, desde logo, não sem surpresa, que em torno de dois polos giram o aracaty-vento, o aracaty-brisa e os pesquisadores. De fato, todos os que se referem à violência e a desagradabilidade do aracaty, dele sentiram os efeitos no vale do Jaguaribe ou sobre ele acolheram informes de habitantes dessa região. Da mesma forma, os que dão ao aracaty as qualidades de brisa acariciante e saudável, sempre se referem às circunvizinhanças de Icó. 

Rodolfo Teófilo, por isso, pertence ao polo do Jaguaribe, pois afirma textualmente que o “aracaty é um vento mui forte que sopra de repente, no verão, ao cair da tarde”. Os sertanejos do Ceará, segundo testemunho de Bernardinho de Souza, pertencem ao polo do Icó, pois afiançam com toda simpleza e lealdade que “o aracaty é refrescante e ameno”. 

Tudo depende, de como se percebe, do ponto de observação. 

Teschauer, que viveu no extremo sul do Brasil, ao registrar que “aracaty é vento ou rajada forte”, ouviu ou leu evidentemente, gente de um polo apenas, o que não deixa de ser injusto e, de certa forma, prejudicial à tarefa de quem quer que se meta a vocabularista. 

O leitor desprevenido ou o consulente que não queira entrar em detalhes, apoiado em Teschauer afirmará com razão e com certa força que aracaty é vento rijo, quando, em verdade, pode ser também brisa amena. 

Mas, pondo de parte tais considerações, podemos quase garantir que o vento em questão é de fato rijo e desagradável em certos pontos do vale do Jaguaribe, e brisa, positivamente amena, na região icoense. 

Serão, todavia, dois ventos diversos com o mesmo nome ou, pelo contrário, será o mesmo vento em duas de suas modalidades? 

Pensamos que a corrente aérea é uma só, rija no Jaguaribe e branda no Icó. A sugestão de alguém que quer ver na denominação do vento simples generalização do nome da cidade cearense – Aracati – parece improcedente. Não é razoável supor que ao vento se desse o nome de aracaty só porque transita ele, indiferentemente , pela cidade de Aracati. 

A cidade, sim, é provável que tenha recebido essa denominação por se achar na região varrida pelo aracaty. Do que se não deve duvidar, entretanto, é de ter esse nome provindo da fina e penetrante observação dos primitivos habitantes do lugar. Esses, avessos a polêmicas literárias ou científicas, sentiram, naturalmente, os efeitos do vento rijo e desagradável no ambiente em que assim ele se apresenta, e chamaram-no aracaty. 

Se o mesmo vento logo adiante tornava-se brando e agradável, isso não poderia constituir motivo bastante para novo batismo.

Aracaty rijo ou brando, agradável ou desagradável, foi sempre aracaty. 

Mas, claro é que essas divergências de opinião no campo prático, no ângulo reduzido criados pelas sensações açuladas ou adoçadas pelo vento ou pela brisa, refletiram no campo etimológico, dividindo os estudiosos em dois grupos intolerantes também. 

Acordes, embora, a respeito da origem tupica do vocábulo, discordam “in totum” quanto à sua formação. Querem os componentes de um dos grupos que a palavra aracaty seja corruptela de ára-catú, e os de outro, que provenha da justaposição das expressões ára e caty. 

Está-se a perceber que os propugnadores de áracatú são os de Icó, e que os defensores de áracaty são os do Jaguaribe... 

Dizem os primeiros que catú bem poderia se ter transformado em caty pela simples mudança do u final em y... Os segundos acham que não; que caty é, sem dúvida alguma, a palavra caty tupi em que o i especial dessa língua, na vernaculização, se tornou i puro português ou y grego, conforme o gosto de quem grafou a palavra. 

Catú, em tupi, significa geralmente: bom, apto, saudável, etc. e caty lembra apenas a catinga, o mau cheiro, o cheiro desagradável. Baptista Caetano, aliás, faz notar com muito espírito, que catinga deve significar cheiro forte, cheiro recendente, ficando a questão de saber se é bom ou mau, agradável ou desagradável a cargo dos caprichos olfativos de quem recebe as vibrações odorantes... 

Como dizíamos, porém, catú e caty são os termos trazidos à baila para satisfazer as preferências etimológicas de uns e de outros. Se aceitarmos o étimo catú, o vento será bom e agradável; se optarmos pelo caty, o vento será nauseante, fedorento e em consequência, desagradável. 

Mas aceitar catú como termo componente da denominação é admitir a possibilidade de u acentuado se transformar em i, fenômeno esse não muito a jeito das leis glotológicas, e algo estranho na vernaculização dos termos tupis. Se quiséssemos falar claramente, diríamos que achamos impossível tal transformação. O contrário, sim, é que se verificou sempre na adaptação das vozes indígenas ao sabor do português: o i especial que existe em caty correntemente traveste-se em u. 

A existência só do designativo com i ou y demonstra que não houve transformação ou, pelo menos, que a transformação não atingiu completamente o âmbito de predomínio do caty. Não sabemos se em algum lugar o tal vento tem o nome de aracatú, mas podemos afirmar que jamais topamos com semelhante expressão para designá-lo. 

Não sendo provável a mudança do u em y, e não contando dos escritos regionais o apelativo aracatú, é de presumir-se que o vento sempre se chamou aracaty e que aracaty exprime com segurança a sua característica essencial: o mau cheiro. 

Quanto ao fato de ser vento rijo na cidade de Aracati e brisa mansa em Icó, nada há que cause espanto. O aracati rijo e desagradável sê-lo-á, também mal cheiroso, ao invadir as terras de beira-mar... Filtrado, porém, pelas florestas e capoeirões, retido em sua velocidade pelas montanhas e expurgado de seu mau odor ao longo do caminhamento, pode perfeitamente chegar transmudado em brisa salutífera nas regiões do Icó. Aí, então, pode ser aracatú, mas na opinião dos que o recebem metamorfoseado. 

Para isso não há necessidade alguma de se arquitetarem hipóteses que se não coadunam com os princípios reguladores das mutações fonéticas. 

Que a zona em que se acha situada a atual cidade de Aracati assim mesmo era chamada, pelos índios, atesta-o um profundo conhecedor do assunto: Tomaz Pompeu. Diz ele: este nome foi dado pelos Pitiguares, e depois passou a designar a povoação, hoje cidade de Aracati. 

Parece-nos, concluindo, que tudo está bastante claro. Há um vento forte que sopra do mar durante o estio, vento este mal cheiroso, carregado de maresia, aracaty em suma, vento catingueiro. Ao penetrar a região interior abranda-se, livra-se da carga indesejável e torna-se brisa agradável. Nesse instante, perpassa por Icó e, embora continuando a ser o mesmo aracaty, de nome apenas, já de aracaty, não tem as más qualidades: é um verdadeiro aracatú. 

Corrobora esta síntese a seguinte afirmação de Teodoro Sampaio: 

Aracati, cidade à margem do Jaguaribe, até onde sobe a maré. 

Podem observar os que conhecem o tupi, que vento na Língua Geral é ybytú e não ára, como aparece em aracaty. Mas ára, com bastante largueza, significa tempo, dia, vez, época, ocasião, etc. e, daí o poder-se concluir que não só ao vento se daria o nome de aracaty, mas também ao tempo, à época, ao período durante o qual ele soprava, tanto vale dizer vento aracaty como tempo, época, ocasião do mau cheiro. 

O vento, enfim, é um só, carregado de maresia, catinguento, rijo e desagradável no Jaguaribe, até onde sobe a maré; brando, meigo e salutífero em Icó, no interior. 

  

Plínio Ayrosa (Do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo) 


Fonte: REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL, São Paulo, 1936, p.  87-92 

 

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