O seu filho, de cor bem morena, estatura meio baixa e compleição raquítica, se chamava Bento, mas era crismado pelo povo daquele lugarejo com dois apelidos: “Pé de Quenga", em virtude de ter um pé aleijado, em formato de uma quenga de coco, e "Bento feroz", devido ser ele inexplicavelmente neurastênico e violento no agir e no falar. Uma pequena cousa que se fizesse ou dissesse, que não combinasse com as suas ideias, recebia censura imediata, de corpo presente. Era pornográfico como uma rameira em vibrações etílicas e sua violência atingia às raias da loucura.
Em tempos remotos "Pé de Quenga" fora marinheiro de galeras de velas cruzadas, tendo deixado aquela árdua profissão por duplo motivo: a idade avançada e o defeito físico de que era portador.
Naquela época não existiam, como hoje, os institutos de previdência social para amparo dos profissionais associados, na invalidez e na velhice. Por essa razão, ao deixar de ser embarcadiço, o "Bento Feroz", para manter a sua pequena família teve que se dedicar à pesca.
Talvez temendo ser constantemente pungido pelas saudades dos velhos tempos em que o oceano fora o seu Parque de diversões e o seu farto ganha-pão, muito raro pescava no mar. Fazia-o, contudo, com muita frequência e quase todos os dias, no piscoso rio Jaguaribe, navegando em sua maltratada bateira sem vela, movida a remo. E assim provia as mais urgentes necessidades do seu humílimo lar.
De fala apressada e com acentuado sotaque português na pronúncia do “r” e do "l", quando lhe tratavam por qualquer dos apelidos, era de fazer arrepiar cabelos: de sua boca voavam, ligeiro, mil palavrões obscenos que, atirados ao provocador de sua cólera, resvalavam e iam atingir de cheio a inocente mãe do seu desafeto.
"Pé de Quenga", além de analfabeto, era, conforme acima mencionei, de uma estupidez inata, incomum. Creio que sua idade avançada e a vida de privações que levava, muito contribuíssem para aquilo. Mesmo assim era o imprescindível ao esteio de sua família.
Certa vez, ao regressar da pescaria, (naquele dia ele tinha ido ao mar), levou para casa um uru contendo várias qualidades de peixe. A hora da refeição, a velha "Maroca", na inocência de sua caduquice, de nenhum se agradou. A essa altura, em face da inapetência de sua genitora, o “Bento Feroz" incendiou-se de raiva e saiu-se com esta: "Minha mãe não come biquara, minha mãe não come cangulo, minha mãe não come cavala, pois coma o diabo, coma o diabo".
***
A tapera onde morava o Bento com sua pequena família ficava bem perto do paredão do açude que há no Fortim.
Um dia, antes do romper da aurora, ele se levantara para ir pescar, e notou que a velha não estava na rede. Procurou-a nos demais compartimentos e em torno da casa e nada de a encontrar. Deu ainda várias buscas pela vizinhança, e nem vestígio de dona "Maroca". Diante do inexplicável desaparecimento de sua genitora, o Bento deu logo sinal de alarma.
Naquele dia, era esperado um navio no porto do Fortim. Alarmados com a notícia, saíram diversos estivadores à procura da desaparecida. Depois de inúmeras e infrutíferas buscas, o nosso prezado José Carapuça, cuidadoso como sempre foi no desempenho de toda e qualquer missão de que se incumbe, teve a iniciativa de olhar para dentro do açude, e, com pesar, avistou a velhinha boiando, com a roupa descomposta e um talo de milho debaixo do braço. Morrera afogada. Em face do triste quadro que deparava, o nosso José Carapuça gritou: "Bentinho, vem cá!" E apontando para dentro do açude: "Está ali o cadáver de dona "Maroca". E o "Pé de Quenga" contemplando aflito o trágico e irremediável fim de sua mãe, exclamou em forte crise de choro: "E isto mesmo... aquilo que a gente mais estima neste mundo, quando menos se espera vem o diabo e o carrega... vem o diabo e o carrega...”
Estranhas manifestações de amor filial!