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Tuesday, 16 August 2022 13:13

SÚPLICA AO ANJINHO PARDO DO PÉ TORTO, QUANDO DA INUNDAÇÃO DE ARACATI

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O poema intitulado "SÚPLICA AO ANJINHO PARDO DO PÉ TORTO, QUANDO DA INUNDAÇÃO DE ARACATI" é parte do livro "Coisas Velhas Saídas da Beira do Túmulo" de autoria de Raimundo Herculano de Moura. A obra foi publicada pelo Grupo Lua Cheia em 2002 e contou com o apoio institucional do Instituto de Estudos e Pesquisas sobre o Desenolvimento do Estado do Ceará, órgão vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Leia, a seguir, o poema na íntegra.

 

SÚPLICA AO ANJINHO PARDO DO PÉ TORTO, QUANDO DA INUNDAÇÃO DE ARACATI

 

23 de abril de 1974.
Hoje, pela primeira vez,
Sou forçado a abandonar minha casa,
Que está em reparos, sem portas
E sem qualquer segurança.
Nem eu nem aqueles que sofrem como eu
A trágica inundação e tamanha calamidade,
Temos inspiração ou sequer uma gota de calma
Para pintar e descrever com serenidade
A imensidão da dor que nos vai n’alma.
Preparo-me, finalmente,
Para deixar o velho casarão
Onde há 34 anos moro
E constituí uma numerosa prole
De 13 filhos, que ali nasceram,
Moraram e sofreram junto comigo.
Minha casa faz parte de minha vida
E é um complemento da minha própria história.
Ao abandoná-la, as lágrimas me rolavam pelas faces,
Como se eu fora um condenado expulso da pátria
E sem esperança de um dia a ela voltar...
Só agora, neste momento trágico,
Com alma ferida e os membros lassos,
Compreendo a enorme tristeza e a dorida saudade
Daqueles que vão confinados.
Antes da angustiosa partida,
Sofrendo e desesperado como um louco,
Admiro as plantas cheias de viço e verdor,
Fito o céu nublado e ameaçador
E me ponho a contemplar os meus pássaros que cantam
Sem compreender o triste drama que me vai n’alma.
Com lágrimas nos olhos e no coração,
Abri todas as gaiolas,
Dando aos meus queridos e canoros passarinhos
Aquilo que jamais tive
E ainda hoje não tenho – a liberdade.
Traumatizado e com um saco ao ombro,
Andei um quilômetro a pé, dentro d’água,
Com água acima dos joelhos, para
Apanhar uma embarcação
Que me levasse ao Fortim,
Meu agradável e inesquecível exílio,
O que não foi muito difícil.
Mas devo tamanha gentileza
Ao meu velho amigo Miguel Carvalho,
Cuja grandeza d’alma reside em seu próprio nome,
E viajei num barco motorizado, de sua propriedade,
O qual, com sua poderosa força motriz,
E ajudado pela correnteza,
Singrava velozmente, rio abaixo,
Sem saber que levava em seu convés
Um homem amargurado e profundamente infeliz.
Chorando, mais por dentro que por fora,
Senti mais do que nunca a presença de Deus
E me pus, mudo e contemplativo,
A olhar a tristeza das garças no mangue,
A admirar as ilhas alagadas
E, finalmente, toda imensa grandeza
Daquele panorama estupidamente belo.
Após 40 minutos de viagem fluvial,
Em chegando ao Fortim, que vi?
Um tugúrio à beira da estrada
Numa sala em cuja mesa repousava,
Dentro de um caixãozinho azul,
Um menino pardo do pé torto,
De quase um ano de idade,
Estampando no rosto um sorriso,
Mas tranqüilamente morto.
Então, o meu triste coração de vivo
Ao coração daquele morto assim falou:
Anjinho pardo do pé torto,
Que repousa nessa mesinha tosca,
Dentro do seu esquife azul,
Sorridente e tranqüilamente morto,
Quando você chegar lá no céu
Rogue a Deus Nosso Senhor
Por todos nós que sofremos e padecemos
As conseqüências sem jeito
E os desastrosos efeitos
Da grande enchente do rio Jaguaribe.
Sei que o defeito do seu pé não o inibe
Tampouco atinge sua alma
Nem diminui suas virtudes,
Anjinho pardo, do pé torto.
Por isso eu lhe peço com fé e ternura,
Que vele por nossa cidade alagada,
Com água a metros de altura.
Que olhe os pais desesperados,
As mães aflitas e angustiadas,
E os meninos tristes, famintos,
Esquálidos, sem sangue,
Chorando e gemendo de fome.
Olhe toda esta imensa tristeza
Que nos cobre, nos cerca e nos rodeia
Como se presos estivéssemos
Na mais degradante cadeia.
Olhe os pombinhos inocentes,
Nas cumeeiras das casas submersas,
Abandonadas, desertas...
Olhe os gatos deitados nos muros,
Soltando miados de fome
E de saudade do seu ausente dono,
E ali se sentindo inseguros.
Olhe os barcos e canoas,
Singrando em nossas ruas
Ora transformadas em lagoas,
E nos livre de martírios tão duros.
Rogue tudo isso a Nosso Senhor,
Sem se lembrar das coisas obscenas desta vida.
Esqueça as coxas, os umbigos,
Os seios exuberantes, as barrigas
E outras partes pudendas das jovens seminuas,
Que você, inocentemente,
Viu quando era vivo.
Será essa falta de vergonha e de pudor
Que arrasta e traz até nós
O castigo de Nosso Senhor?
Anjinho pardo do pé torto,
Que cena tremendamente dantesca!
Olhe a violência das águas
Cobrindo os tetos das casas,
Fazendo casas ruírem,
Arrastando carnaubeiras, oiticicas,
Reses, jumentos, ovinos e caprinos,
Levando tudo para o mar insaciável.
O mar, porém, solidarizando-se conosco,
Através de suas ondas revoltas e gementes,
Manifesta o seu voto de pesar.
Anjinho pardo do pé torto,
Sorridente e tranqüilamente morto,
As nossas casas e quintais
Estão cheios de cobras de toda natureza.
Livre-nos das cascavéis e jararacas,
Quer ofídias quer humanas,
Pois você bem sabe que estas
São tão perigosas quanto aquelas.
Anjinho pardo do pé torto,
Eu lhe peço por caridade,
Que rogue a Nosso Senhor,
Fonte de luz e amor,
Que enxugue a nossa cidade,
Faça nossa esperança voltar
E extermine toda a tristeza
Que o coração nos invade.
Anjinho pardo do pé torto,
Que já está com Jesus Cristo,
Eu lhe peço tudo isto
Cheio de fé e confiança
Na imensa dor de sua pobre mãe,
E pelo mérito daquela lágrima longa e triste,
Símbolo real da saudade,
que as faces dela alaga
nesta amarga despedida
e na hora em que você deixa a casa,
todo coberto de flores,
dentro do seu caixão azul...
Manuel – Anjinho pardo do pé torto,
Pela sua inocência e candura
Tão puras como a brancura das garças,
Peça a Deus Nosso Senhor
Que nos conceda graças
E faça com que jamais se repitam
Estas tremendas desgraças
E o flagelo que ora nos fere e nos tortura...

Aracati, 23 de abril de 1974

Moura, Raimundo Herculano de. Coisas Velhas saídas da Beira do Túmulo. Fortaleza: Editora INESP, 2002

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Raimundo Herculano de Moura

RAIMUNDO HERCULANO DE MOURA- Poeta e cronista aracatiense. Nasceu em 07 de novembro de 1914, filho do casal Ana Ribeiro de Moura e Manoel César de Moura. Contribuiu como articulista nos jornais Alvorada, Tribuna do Povo e Gazeta do Vale, entre outros. 

Publicou: 

Coisas Velhas Saídas da Beira do Túmulo. Org. Associação Artístico Cultural Lua Cheia. INESP. Fortaleza-CE. 2002.

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