Em sua preciosa obra "RUBAYAT", assim se expressou Omar Khayyam:
Uma rosa dizia:
Sou a maravilha do universo.
Será possível que um perfumista
Tenha coragem de fazer-me sofrer?
Um rouxinol contou:
Um dia de felicidade prepara um ano de lágrimas".
Os festejos consagrados ao rei "Momo", em Aracati, tiveram seu início ruidoso e alegre, para coroá-lo a mais profunda melancolia.
No Domingo, dia 13 de fevereiro, blocos mominos e foliões de várias espécies e castas sociais desfilavam eufóricos pelas ruas da cidade, ao compasso cadenciado de suas baterias, ateando alegria ao coração do povo.
Verdadeira massa humana apinhava as vias públicas, exibindo, em sua maioria, trajes de variadas cores, muitos deles até exóticos, dando à cidade uma nota verdadeiramente policrômica. Parecia até que a alegria contagiava os corações dos participantes daquela loucura carnavalesca do ano de 1972.
Desfilavam blocos elegantes, luxuosos, em admirável promiscuidade com as turmas da bagunça. Decentes, eram apenas o das "Ciganas Feiticeiras" com trajes de vários matizes; o dos "índios", com vestes e cocares de penas variegadas e, finalmente, o do "Caveira", trajando calças brancas com pigmentos negros e camisas pretas com caveiras às costas. Diante da realidade desta vida transitória, foi este último o que mais me chamou atenção, porque, todos nós, um dia, queiramos ou não, seremos caveiras.
Certo é, que, sem pensar nisso, todos desfilavam alegremente sob um céu sem sol e toldado de nuvens, o que nos impregnou a alma de um sentimento de verdadeira tristeza. O tempo estava nublado, bem nublado mesmo, talvez prenunciando chuva.
Sol é luz, é calor, é prazer. E a real alegria só impera com intensidade em dias e ambientes claros e luminosos.
Não sabemos por que pressentimento, mas na terça-feira de carnaval, enquanto os foliões e o povo que os acompanhava cantavam e saracoteavam loucamente, ao som de suas orquestras, o autor desta crônica sentia uma profunda tristeza roer-lhe o coração. Porque não havia sol, ou talvez, porque este ano não saíra à rua o interessantíssimo arranjo do astucioso "Chico de Janes". Ele estivera doente às vésperas do carnaval, e por isso o seu tradicional e famoso arranjo não pôde se exibir, muito embora aquele cidadão aparentar-se recuperado. Como as aparências enganam!
FALEMOS AGORA, DO "CHICO DE JANES"
Desnecessário se faz esboçar a biografia desse estimado cidadão, porquanto todos, aqui, o conhecíamos bem. O "Chico de Janes" não ingeria bebidas alcoólicas, todavia era o folião mais gozado e original que já tivemos de conhecer. À passagem da turma por ele organizada, todos riam a bom rir, espontaneamente.
Proprietário do mais antigo e tradicional hotel da cidade, num dos últimos carnavais, ele exibiu um arranjo alusivo à sua profissão de hoteleiro: um carro alegórico simulando um hotel, onde havia o mais exótico e variado cardápio: "rato frito", "lagartixa ao molho", "sapo cozido", "cobra assada", "canja de urubu", "salada de urtiga e xiquexique", "baiacu cozido com leite de coco" e interessante é que ainda conduzia no seu "Hotel Ambulante" um "viveiro" contendo grande parte dos diversos espécimes com que preparava o seu extravagante cardápio.
O "Chico de Janes", com a sua simplicidade invulgar, sabia divertir-se e divertir aos outros. Todo mundo fazia questão de ver de perto aqueles arranjos que ele, excepcionalmente, preparava para apresentar ao público durante o tríduo carnavalesco.
Este ano, porém, a conselho do seu médico, não pôde exibir o arranjo antecipadamente preparado para apresentação neste carnaval. Mesmo assim, sob custódia médica, da porta de sua residência assistiu à passagem dos blocos, aplaudindo-os.
O bloco de sua predileção era o da CAVEIRA, do qual era integrante o seu filho José Flávio de Lima Zaranza. Triste e fatal coincidência! Pois foi precisamente à passagem do Bloco da "Caveira" que o entusiasmo lhe tocou as fibras mais íntimas do seu enfermo coração, provocando-lhe uma recaída. Empalideceu. Desmaiou. Levaram-no para o Hospital Santa Luiza de Marillac. Ali, os facultativos empregaram todos os recursos da ciência, porém tudo foi inútil. O enfarto fora violento. O nosso estimado e inesquecível amigo estava morto. Aquele sentimento de entusiasmo e alegria que pouco antes manifestara ao ver passar o bloco da "Caveira", fez parar o seu velho coração, trazendo para a sua enlutada família incontáveis anos de lágrimas...
“... UM DIA DE FELICIDADE PREPARA UM ANO DE LÁGRIMAS"...
A nossa vida é repleta desses transes de dor.
A população de Aracati estimava o "Chico de Janes" por tudo: pelas piadas interessantes que dizia, pela bondade que lhe era inata, pela caridade que costumava fazer aos seus semelhantes mais necessitados. Estamos ao corrente das ações genuinamente humanitárias que ele praticava ocultamente, sem alarde. Temos, também, pleno conhecimento de que o nuperfalecido Chico de Janes, que durante quase meio século exerceu o cargo dele de Delegado de Polícia desta cidade, como suplente, quando no exercício daquele cargo era, usando do seu prestígio pessoas, e às vezes, de sua própria autoridade, pôr em liberdade presos correcionais. Corações do tamanho do seu, são raríssimos nos dias atuais.
Os aracatienses, que tanto o estimavam e admiravam quando vivo também souberam pranteá-lo e respeitá-lo depois de morto. Tão logo foi publicada a fatal e inesperada notícia, os foliões cessaram o divertimento e os blocos, silenciosos, recolheram-se às respectivas sedes, numa autêntica demonstração de pesar e respeito para com seu ídolo recém-falecido. Silenciosa, a massa humana transitava pelas ruas, considerando o Chico de Janes um patrimônio da cidade que também emudeceu, solidarizando-se com o luto da família golpeada de surpresa. Tudo isso traduz explicitamente elevado grau de sentimento dos nossos munícipes.
Assim, o dia 15 de fevereiro de 1972, terça-feira de carnaval, constituiu-se para o Aracati num autêntico "Dia de Finados". Eram as "cinzas" antecipadas da quarta-feira: "lembra-te, homem, de que és pó e em pó te converterás".
A multidão que no dia seguinte ao seu decesso o acompanhou, chorosa, à última morada, foi uma patente revelação do quanto ele era estimado pelos seus conterrâneos. A mole humana que lá estava era comparável à que se fez presente ao enterro de Mons. Bruno Figueiredo. Parecia até procissão de festa de padroeiro.
No cemitério, vimos cenas de pungir o coração: mulheres e até homens, chorando copiosamente. De joelhos, sobre a cova rasa do pranteado extinto, uma prostituta em pranto, a soluçar: "Meu Deus, por que tirastes o meu protetor, meu amigo e meu irmão Chico de Janes? Agora, que será de mim, quando eu for presa?"... Ignoro o nome da tal mulher; sei apenas que, aqui, era conhecida por "Mineira", certamente por haver nascido em Minas Gerais. Certo é, que era viciada presa por desordens. E o nosso nuperfalecido era o seu "habeas corpus", para pô-la em liberdade. Esta, a justa razão das suas lamentações e suas lágrimas sobre o túmulo do seu grande benfeitor.
Agora, só nos resta o dever de apresentar à família enlutada o nosso voto de pesar e a nossa palavra de solidariedade à sua dor, e perda irreparável.
13 de fevereiro de 1972.