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Sunday, 29 September 2024 14:32

ENTREVISTA | RAFAEL SILVA: UMA ARQUEOLOGIA DAS ORIGENS DO DRAMA

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Fotomontagem. Rafael Silva. Fotomontagem. Rafael Silva. Detalhe- Coro de três silenos tocando cítaras. Figuras negras numa ânfora, c. 520-510

Marciano Ponciano conversa com o professor Rafael Silva, especialista em literatura e estudioso da cultura grega, sobre sua pesquisa inovadora acerca das origens do drama. Em uma leitura que transcende a busca por uma "verdadeira origem" única, o professor desvenda a complexa teia de religião, política e poesia na Grécia Arcaica. Através de sua análise de fragmentos poéticos e testemunhos históricos, revela como a arte da representação, impulsionada pela escrita, floresceu em um terreno fértil de rituais, poder e expressão artística. Uma viagem no tempo que convida o leitor a descobrir as raízes do drama sob um novo prisma.

MARCIANO PONCIANO- Sua dissertação propõe uma “arqueologia das arqueologias do drama”. Poderia explicar para nossos leitores o que isso significa e qual a importância de se analisar as diferentes teorias sobre a origem do drama, ao invés de buscar uma única e definitiva “verdadeira origem”?

RAFAEL SILVA- Em primeiro lugar, gostaria de agradecer pelo convite para ocupar esse espaço de divulgação do que tem sido produzido de culturalmente relevante na cidade do Aracati e no Ceará, de modo geral. O trabalho que você faz com o Grupo Lua Cheia, meu caro Marciano Ponciano, é sensacional e merece ser sempre louvado. Em segundo lugar, aproveito para me apresentar brevemente. Meu nome é Rafael G. T. da Silva e, desde 2023, tenho atuado como professor de Literatura na Universidade Estadual do Ceará (UECE), campus Aracati. Minha formação acadêmica consiste em bacharelado em Grego Antigo, licenciatura em Português-Francês, mestrado e doutorado em Estudos Literários, sempre pela Faculdade de Letras da UFMG, além de pós-doutorado em Literatura Brasileira, pela UERJ. Meus principais interesses são Literatura, Filosofia e História, assim como teoria e prática da Tradução, Teatro e Educação. Além de artigos e capítulos de livros, tenho obras autorais em minhas áreas de interesse, com destaque para Origens do drama clássico na Grécia Antiga (Edições Loyola, 2022) e, em coautoria, Ser Clássico no Brasil: Apropriações literárias no Modernismo e Pós (Editora da Universidade de Coimbra, 2022). Além disso, sou autor de um livro de poemas, publicado sob o heterônimo de “josé g.”, com o título poesia alguma (Urutau, 2023).

Chego agora à sua pergunta... Quando iniciei minha pesquisa sobre a origem da tragédia, e do drama de modo geral, minha preocupação era de ordem histórica, ainda que também tivesse um interesse estético. Nesse sentido, meu trabalho inspirava-se pelo procedimento de Friedrich Nietzsche, quando escreveu seu livro O nascimento da tragédia a partir do espírito da música (orig. 1872). Contudo, quando comecei a pesquisa, encontrei diferentes teorias propostas com o objetivo de explicar as origens e desenvolvimentos do drama na Antiguidade. Algumas dessas teorias foram formuladas por filólogos e pesquisadores modernos, como o já mencionado Nietzsche, mas também nomes tão variados quanto os de Schiller, Wilamowitz-Moellendorff, Gerald Else e Eudoro de Sousa. Ademais, deparei-me também com propostas avançadas por pensadores antigos, como Platão, Aristóteles, Eratóstenes, Horácio e muitos outros. Algumas dessas teorias valorizavam aspectos religiosos (afins ao culto de Dioniso e a outras divindades), outras se concentravam em aspectos políticos e econômicos (relacionados à situação histórica de Atenas e da Hélade nos períodos arcaico e clássico). Havia ainda algumas que levavam em conta aspectos antropológicos, ou mesmo estéticos e até discursivos. Diante dessa pletora de visões alternativas acerca do drama e suas origens, percebi que o posicionamento teórico adotado na análise acabava tendo implicações profundas para a forma de compreender o objeto analisado. 

Nesse sentido, embora minha investigação originalmente buscasse empreender uma espécie de arqueologia do drama (com o objetivo de propor sua origem), rapidamente me dei conta de que precisaria perseguir uma arqueologia das arqueologias do drama, ou seja, uma investigação sobre as diversas investigações já propostas sobre o tema. Colocando em perspectiva essas diversas reconstruções, precisei oferecer um panorama amplo o bastante para dar a ver a que ponto as teorias que as fundamentavam estavam imbricadas em seu próprio contexto histórico, sendo responsáveis não apenas por conformar a compreensão de certos dados relativos ao fenômeno analisado, mas também por definir quais dados haveriam de ser considerados relevantes para a compreensão do mesmo. 

 

 

MP- Você defende que a dicotomia tradicional entre religião e política é insuficiente para a análise da origem do drama. Por que essa separação, tão comum no pensamento ocidental moderno, é inadequada para a compreensão da cultura da Grécia Arcaica?

RS- A dicotomia entre religião e política é moderna, de base iluminista, e, embora tenha representado um estágio histórico importante para o amadurecimento da visão política contemporânea, inevitavelmente implica em reducionismos. Fenômenos religiosos e políticos sempre estiveram profundamente imbricados, tanto porque a religião pode ser instrumentalizada para objetivos políticos, quanto porque a política pode ser profundamente influenciada em certos contextos históricos. Para não irmos muito longe, a onda de pessoas com cargos religiosos que têm se aventurado na política nos últimos anos é bem exemplar disso. Ainda que eu veja com preocupação como há gente disposta a explorar a fé alheia com propósitos eleitoreiros, o fato de que eu discorde da prática não me impossibilita de reconhecer sua existência e sua efetividade.

No caso da Grécia antiga, esse imbricamento entre aspectos políticos e religiosos era ainda mais profundo. Como meu trabalho tenta defender, a origem e o desenvolvimento dos gêneros dramáticos têm relação fundamental com os festivais públicos, as procissões fálicas, os cantos ditirâmbicos e os hinos cultuais. Todas essas manifestações culturais são de cunho religioso, em geral em homenagem a divindades, mas precisam contar com uma estrutura proporcionada pela pólis (incluindo a construção de espaços públicos, o treinamento dos coros etc.). Entram ainda influências de práticas sociais, tanto democráticas, incluindo os debates na ágora e nas assembleias, quanto aristocráticas, como o sympósion [banquete] e o kômos [pândega]. Nessas práticas, referências de ordem política vêm imiscuídas a referências religiosas tradicionais, com sátiros e ninfas aparecendo ao lado de cidadãos, sempre sob os auspícios do deus Dioniso. Quem tiver interesse de compreender quais dados nos permitem propor origens complexas para os espetáculos de tragédia e comédia na Antiguidade, deixo aqui meu convite à leitura do livro Origens do drama clássico na Grécia antiga (2022), de minha autoria.

 

MP- Durante sua pesquisa, você se deparou com algum mito, ritual ou costume da Grécia Arcaica que te surpreendeu ou que você considera particularmente curioso e que gostaria de compartilhar conosco?

RS- Um dos mitos mais curiosos com que me deparei durante a pesquisa é aquele que narra a descida de Dioniso ao mundo dos mortos. O motivo da catábase [descida ao Hades] é tradicional na cultura greco-romana, com as histórias de Héracles e Orfeu sendo bastante exemplares desse tipo de feito heroico, ainda que seja preciso contar ainda as de Odisseu (na Odisseia 11) e Eneias (na Eneida 6), sem esquecer reformulações posteriores (com Cristo descendo à mansão dos mortos, por exemplo, ou mesmo Dante empreendendo o mesmo tipo de movimento no início da Commedia). O caso de Dioniso, contudo, é curioso: filho de Zeus com Sêmele, ele tinha tudo para ser um semideus (como Héracles ou Aquiles), entretanto, o fato de que sua gestação – após uma interrupção abrupta, provocada pela morte da mãe – tenha sido continuada na coxa de Zeus acaba fazendo com que ele tenha um estatuto inteiramente divino. Por causa disso, ele desenvolve o desejo de resgatar a mãe do mundo dos mortos, com o objetivo de torná-la imortal como ele próprio.

A versão que temos desse mito é narrada por Clemente de Alexandria, um patriarca da Igreja cujos princípios religiosos não lhe permitem ser muito explícito nos detalhes. Vejamos o texto dessa passagem:

“Dioniso, desejando descer ao Hades, embora ignorasse o caminho, recebeu a promessa de que lho explicaria um certo homem de nome Prósimno, mas não sem um pagamento: o pagamento não era belo, mas para Dioniso era belo – o pagamento era a graça do sexo, o que Dioniso era requisitado a fazer. O pedido encontra o deus favorável e este prometeu-lhe cumpri-lo assim que retornasse, confirmando com um juramento a promessa. Ensinado [o caminho], ele vai. Retorna de volta, mas não encontra Prósimno (pois tinha morrido): Dioniso, desejando quitar a dívida ao amante, lança-se sobre o túmulo e o alivia. Cortando então um ramo qualquer de figueira, molda-o como um membro de homem e senta-se sobre o ramo, cumprindo a promessa ao morto. Em memória mística desse sofrimento, falos são carregados para Dioniso pelas cidades.” (Clemente de Alexandria, Protréptico 2.34.3-5).

O próprio texto de Clemente evidencia a contraparte cultual desse mito etiológico. Ou seja, o autor sugere que a origem da prática de se cultuar Dioniso com enormes falos carregados em procissões estaria relacionada a essa história de sua descida ao mundo dos mortos. Acho fascinante como esse trecho nos permite compreender as interconexões entre um mito e um culto bastante estranhos às nossas sensibilidades modernas (de base cristã), ilustrando bem o ambiente de festividades em homenagem a Dioniso, nas quais aspectos propriamente fúnebres aparecem combinados com um comportamento licencioso, incluindo o consumo de vinho e a prática do sexo, sob os impulsos de cantos e danças. Apesar de tudo isso estar muito bem atestado nas fontes antigas, leituras de pendor conservador não tendem a reconhecer a existência também desses elementos na imagem que propõem da Grécia clássica.

 

 

MP- Que tipo de relação existia entre a poesia e o poder na Grécia Arcaica? Como figuras como Sólon e Pisístrato utilizaram a poesia para fins políticos, e como a ascensão dos tiranos impactou o desenvolvimento da poesia dramática?

RS- A questão da tirania na Grécia antiga é bem mais complexa do que uma abordagem simplista poderia sugerir à primeira vista. Isso porque a noção de “tirano” era aplicada para caracterizar qualquer tipo de governante que tivesse chegado ao poder por vias consideradas ilegítimas pela tradição. Ora, todo novo regime político tende a ser considerado ilegítimo da perspectiva tradicional que tinha vigência no regime político precedente. Ou seja, a dimensão “tirânica” associada à noção de “tirano” veio a se constituir historicamente aos poucos, porque a tendência foi que governos concentrados na figura de uma única pessoa ensejassem abusos personalistas. Contudo, no momento em que os primeiros tiranos se estabeleceram na Grécia do período arcaico, isso não necessariamente foi o caso, uma vez que esses tiranos – embora viessem de famílias aristocráticas – costumaram se opor aos privilégios de grupos aristocráticos, precisando atender a demandas populares para conseguir o apoio necessário a fim de se manter no poder. Certamente algumas tiranias foram exercidas em detrimento do bem-estar da comunidade, que, subjugada pelo poder das armas, servia aos objetivos egoístas de poucas famílias responsáveis pela articulação do poder. Ainda assim, mesmo nesses casos, o interesse individual do tirano via-se obrigado a levar em conta o desenvolvimento de parte das necessidades e aspirações coletivas, sob o risco de esmagar aquilo mesmo de que dependia seu próprio sucesso. 

Pisístrato tinha que enfrentar uma classe aristocrática cuja força residia não apenas no controle da terra e da justiça, mas também da religião. Nesse sentido, além de modificar paulatinamente as possibilidades de distribuição agrária e as condições de julgamento dos litígios, Pisístrato buscou promover a instituição de cultos cívicos centralizadores a partir de divindades da pólis ou de suas camadas menos privilegiadas, a fim de minar justamente as mais tradicionais estruturas constituintes dessa sociedade. Nesse sentido deve ser entendida a opção pela deusa Atena como objeto de culto, a partir da construção do “pré-Partenon” (destruído em 480 AEC, durante a invasão persa), incluindo a instituição do festival das Panateneias e sua representação em moedas.  Todas essas medidas fizeram parte de uma espécie de reforma religiosa levada a cabo por Pisístrato, com o objetivo de diminuir os regionalismos e promover maior unidade religiosa na Ática. Com isso, diminuía-se o poder das aristocracias locais, por meio da concentração do poder no centro de Atenas. Se esse poder, a princípio, esteve nas mãos do tirano e de sua família, como sua manutenção dependia do apoio popular, não demorou muito para que o povo o reivindicasse para si e fundasse a democracia.

Como aos poucos deve estar ficando claro, nesse contexto histórico, a poesia era um veículo por meio do qual as pessoas não apenas entravam em contato com suas divindades (com cantos entoados em cultos nos templos), mas também expressavam seus valores e visões de mundo, inclusive em termos sociopolíticos. As mudanças sociais por que passava Atenas sob o governo de Pisístrato envolviam profundas transformações da vida religiosa e cultural da comunidade. Além da promoção de Atena como sua principal deusa protetora, o governo reconheceu oficialmente o culto de Dioniso (que até então tivera dificuldade em assegurar sua condição de deus olímpico), justamente a fim de solapar a exclusividade dos cultos aristocráticos regionalistas. Tal esmorecimento dos particularismos religiosos a partir do culto ao deus do vinho seria implementado ainda mais vigorosamente a partir da instituição dos concursos dramáticos no festival das Grandes Dionísias (entre os anos de 538 e 528 AEC, conforme o registro do Mármore de Paros), cujo esplendor cívico em pouco tempo ultrapassou o das Panateneias. Ambos os festivais tiveram papel fundamental na nova orientação da sociedade ateniense, pois toda ocasião de performance poética desse tipo promove oportunidades nas quais amplos setores da comunidade são convocados a participar, seja como protagonistas, seja como espectadores, criando e consolidando os laços que os unem enquanto corpo cívico e coletividade religiosa. 

 

MP- A figura de Téspis, frequentemente considerado o "pai da tragédia", é analisada em sua dissertação. Indo além da narrativa tradicional, o que podemos aprender sobre a real contribuição de Téspis para a inovação do drama?

RS- Os testemunhos antigos sobre Téspis são complicados. Na ausência de fragmentos seguros de sua autoria, precisamos nos apoiar naquilo que outros autores escreveram sobre ele, amiúde muitos séculos depois de sua pretensa existência em meados do século VI AEC. Ou seja, a figura de Téspis embaralha-se um pouco nas brumas do tempo. Com base em minha análise desse material, contudo, parece seguro afirmar que uma pessoa (ou um grupo delas) introduziu o drama na cidade de Atenas, com a instituição dos concursos trágicos entre os anos de 538 e 528 AEC, provavelmente durante a tirania de Pisístrato. O nome tradicionalmente dado a essa pessoa foi Téspis (palavra que, em grego antigo, também funciona como adjetivo, com o sentido de “inspirado). Esse nome aparece reconhecido como o da pessoa responsável por desenvolver um trabalho poético a partir de manifestações culturais típicas do período de fim da colheita (no final do outono e inverno), comuns em vilarejos da Ática, principalmente na Icária (região onde talvez tenha nascido). Além disso, sua inventividade e sua importância para o desenvolvimento da poesia trágica são frequentemente mencionadas nas fontes antigas. Independentemente do valor histórico de cada uma dessas fontes, Téspis surge como o responsável tanto pela introdução do primeiro ator na tragédia quanto pelo emprego de algum tipo de cobertura do rosto durante sua performance, sendo de se propor uma íntima relação entre esses dois eventos e a própria invenção da tragédia (entendida como gênero poético dramático e mimético).

Não é de se estranhar, portanto, que esses mesmos testemunhos mencionem seriamente a possibilidade de Téspis ter sido o verdadeiro inventor da tragédia. Subjacente a essa ideia encontra-se a sugestão de certo vínculo entre poesia trágica – entendida como drama poético – e um processo de representação mimética: essa representação se daria pela atuação [hypókrisis], entendida, a princípio, como alheamento da identidade (pela mera cobertura do próprio rosto), mas, em seguida, como identificação na alteridade (pelo emprego de uma máscara que ofereceria ao ator a possibilidade de, por meio da ação dramática, tornar-se outro).  As consequências disso para o desenvolvimento dos gêneros dramáticos, ainda que nesse momento inicial fossem imprevisíveis, seriam profundas e irreversíveis.

 

 

MP- Ao longo da dissertação, você analisa diversos poemas fragmentários de autores como Arquíloco, Sólon e Prátinas. Qual foi o maior desafio de trabalhar com esses fragmentos e o que te fascinou em tentar reconstruir, como num quebra-cabeças, as ideias e os contextos desses poemas?

RS- Trabalhar com fragmentos é um enorme desafio. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer um engano que pode ser provocado pela própria palavra “fragmento”. Geralmente, o que se chama de fragmento nos Estudos Clássicos é um trecho atribuído a um autor antigo por outro autor posterior, que o menciona em sua obra. Nesse sentido, trata-se praticamente de uma citação. Às vezes encontramos fragmentos em papiros extraídos de escavações arqueológicas, como aquelas que acontecem em Oxirrinco (no Egito), ou em Pompeia (na Itália), mas o mais comum é que coleções de fragmentos sejam majoritariamente compostas por esses trechos extraídos de obras bem posteriores, nos quais se atribui a um autor mais antigo certa formulação. Um sem-número de problemas é acarretado pelo procedimento que consiste em tentar interpretar apenas as palavras citadas (as mais antigas), como pode imaginar qualquer pessoa que já tenha precisado lidar com citações descontextualizadas. No caso dessas coleções de fragmentos, é preciso fazer um grande esforço para se recontextualizar cada trecho citado como “fragmento”, a fim de se tentar compreender com que objetivo o autor posterior citou aquele trecho especificamente em sua obra. Além disso, cumpre ter cuidado porque atribuições falsas, invenções e jogos ficcionais são procedimentos relativamente comuns na Antiguidade (principalmente dentro do contexto de educação retórica, com exercícios composicionais ensejando todo tipo de pseudologia). 

Esse é um conjunto inicial de problemas. A ele, somam-se outras questões não menos importantes. Esse material raramente é editado no Brasil. Ainda que o mercado editorial brasileiro aos poucos esteja se diversificando, o mais comum é que as edições de fragmentos sejam estrangeiras, caras e de difícil acesso. Com isso, é bem raro que fragmentos estejam traduzidos para o português. O estudioso precisa conseguir manusear pelo menos as duas principais línguas antigas da cultura clássica, isto é, o grego antigo e o latim. Frequentemente, é preciso estudar esse material também em textos e traduções para outras línguas modernas, como o inglês, o francês, o alemão, o italiano e o espanhol. Isso apenas para ter um acesso básico ao material e a algumas análises que permitam abordá-lo dentro de um quadro conceitual mais coeso. Depois vem o trabalho de organizar essas informações, dispersas e fragmentárias como se encontram, dentro de uma ordem espaço-temporal coerente. Nesse estágio do trabalho, um dos desafios é tentar resistir à tentação de preencher as lacunas entre as informações disponíveis com aquilo que o próprio pesquisador deseja encontrar, contrariando o que de fato aparece nas fontes. Ou seja, nesse momento, é preciso vasculhar o material vastíssimo legado pela Antiguidade, não apenas em termos de textos, mas também de imagens em cerâmicas, esculturas, moedas e outros restos arqueológicos, a fim de propor uma análise convincente dos dados fragmentários, resistindo aos impulsos de projetar certas preconcepções do presente nas lacunas do passado. É um desafio enorme, mas também algo profundamente instigante.

 

MP- Você argumenta que a introdução da escrita alfabética teve um papel fundamental no desenvolvimento do drama. Como a escrita transformou a forma como a poesia era produzida, transmitida e experienciada, e quais as implicações disso para a emergência do drama?

RS- A difusão mais ampla da escrita alfabética em fins do século VI AEC entre os povos helênicos foi responsável por uma série de transformações em suas instituições sociais. Assim como a invenção do relógio não apenas desenvolve uma nova forma de marcar o tempo, mas também altera a percepção que se tem dele, da mesma maneira, o desenvolvimento da escrita foi responsável por penetrar e transformar a comunicação linguística, mesmo enquanto parecia apenas representá-la. Tecnologias de inscrição fomentam a estabilização de algumas categorias do discurso, e isso certamente alterou a forma como as pessoas do final do período arcaico passaram a lidar com a palavra e suas manifestações: não que o letramento tenha se difundido amplamente da noite para o dia, levando a uma revolução cultural avessa à cultura da canção (tradicional na Grécia antiga). Nada indica que algo sequer próximo disso possa ter acontecido. Os trabalhos de Marcel Detienne e Rosalind Thomas demonstram que a sociedade helênica mantém inúmeros traços de uma cultura oral mesmo durante os períodos em que a escrita teve uma entrada social mais ampla e reconhecível. Contudo, uma vez introduzida e empregada por pequenas parcelas da sociedade, a escrita começou a exercer uma influência gradual, mas inegável, sobre várias modalidades discursivas e expressões artísticas.

Em termos de democracia e suas instituições, Atenas conheceu transformações profundas, mas também no que diz respeito ao desenvolvimento dos gêneros poéticos dramáticos.  Conforme as pesquisas de Jennifer Wise, as evidências para os modos de aprendizado nesse período sugerem que o ensino baseado em textos escritos já devia estar relativamente difundido em Atenas, sendo possível imaginar que o jovem Ésquilo estivesse entre as primeiras turmas “escolares” recém-formadas. Além disso, as inúmeras alusões à escrita em peças dramáticas do século V AEC sugerem que o poeta – entendido como didáskalos [professor] – era responsável por ensinar não apenas os movimentos do coro e os valores cívicos militares, mas também as letras [grámmata]. Há cerca de oitenta menções a leitura, escrita, livros, inscrições, letras e tábuas de cera no corpus supérstite de versos dramáticos, fato que corrobora a ideia de que a escrita foi imprescindível para o desenvolvimento de uma consciência dramática na Antiguidade.

 

MP- Sua dissertação conclui que a “arkh dos gêneros dramáticos” é múltipla e complexa, desafiando a busca por uma única e definitiva “verdadeira origem”. Que lições podemos tirar dessa “arqueologia das arqueologias do drama” para a compreensão da arte e da cultura em geral?

RS- Minha pesquisa defende que as mais diversas (e mesmo contraditórias) propostas teóricas acerca das origens do drama são, mais até do que possíveis, efetivamente necessárias para que possamos abordar as nuances do surgimento do drama na Antiguidade e suas implicações para muito do que derivou disso. As relações entre os gêneros dramáticos e o legado poético do período arcaico foram analisadas aí desde as mais antigas teorias sobre a poesia até as mais modernas, naquilo que viria a constituir a própria tradição da poética. Nesse sentido, a disputa encenada ao longo do texto da dissertação diz respeito não apenas à disputa entre diferentes teorias acerca das origens do drama, mas ao drama inerente a toda teoria sobre as origens. Arte e cultura são sempre fenômenos complexos. Oferecer uma arena de debate ampla o bastante para abordar essa complexidade, em suas nuances, é fundamental para que possamos começar a compreender esses fenômenos.

 

MP- Que caminhos você vislumbra para futuras pesquisas sobre a origem do drama, considerando a riqueza e a complexidade do material analisado em sua dissertação?

RS- Acredito ter mapeado uma área relativamente nebulosa dos Estudos Clássicos, colocando à disposição dos futuros estudiosos algumas informações básicas que consegui organizar para propor meu entendimento acerca das origens do drama clássico na Grécia antiga. Ademais, minha dissertação traz um longo apêndice reunindo a maior parte das fontes primárias que usei. A seleção do material é bastante ampla e diversificada, incluindo fragmentos poéticos, testemunhos textuais, epigráficos e papirológicos, além de algumas imagens de cerâmica. 

Acredito que pesquisas futuras venham a refinar, ou mesmo corrigir, certas análises propostas por mim a esse material. Nem sempre temos o tempo devido para entender com profundidade cada uma das informações analisadas numa pesquisa com um escopo tão amplo, sendo necessário proceder por aproximações. A perspectiva teórica adotada pela pesquisa frequentemente acaba fazendo com que certas informações fiquem em pontos cegos. Nesse sentido, novas análises do mesmo material podem trazer resultados surpreendentes.

Ao mesmo tempo, creio que muitas informações ainda podem ser incorporadas ao debate, seja porque novas leituras de textos já conhecidos podem apresentá-los sob uma luz diferente, seja porque descobertas continuam sendo feitas todos os dias no campo dos Estudos Clássicos. Para que se tenha uma noção disso, acabam de ser publicados quase cem versos “novos” de Eurípides (relativos às tragédias Ino e Poliído), encontrados em papiros desencavados na região de Filadélfia, no Egito. Esse tipo de descoberta tem um potencial revolucionário para a nossa área. Da noite para o dia, é possível que sejam encontradas informações preciosas para uma revisão da cronologia de eventos cruciais ou para uma compreensão diferente de certos acontecimentos históricos. Isso é algo que o acaso guarda como dom para quem estiver disposto a perseverar na pesquisa e no estudo.  


Entrevista concedida por Rafael Silva a Marciano Ponciano em 26 de setembro de 2024.

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Marciano Ponciano

MARCIANO PONCIANO- Sou natural de Aracati-Ce, terra onde os bons ventos sopram. Na academia da vida constitui-me poeta, realizador de sonhos, encenador de máscaras. Na academia dos saberes acumulados titulei-me professor de Língua Portuguesa e especializei-me em Arte-Educação. O projeto de vida é semear a arte por onde passe: teatro, poesia, artes plásticas- frutos da experiência acumulada em anos dedicados a ser feliz. Quando me perguntam quem sou - ator, poeta, encenador, artista plástico, educador? Afirmo: - Sou poeta!

Publicou:

Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. própria. Aracati-CE. 1996.

Caderno de Literatura Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2006.

aracaty. Cadernos de Teatro. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2010.

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Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.