Em 1964, no início da revolução de 1964 a cidade era bucólica e agradável.
Duas estradas principais conduziam até Aracati. A primeira, talvez a mais importante, ligava a cidade à capital do Estado, é a que ia de Aracati a Boqueirão do Cesário, estrada de terra que somente no Boqueirão encontrava a BR asfaltada que liga a capital ao sul do País. A estrada de terra era, na época em que cheguei, tão ruim que minhas filhas pensavam, com o balanço do ônibus, que ainda estavam a bordo do navio em que viajamos de Santos para Fortaleza.
A segunda estrada de acesso ao Aracati é a que vem de Mossoró, e nela a gente pode ter uma visão mais bonita da cidade e dos seus belos arredores.
A cidade tem ruas retas e compridas. Algumas praças. E muitas torres de igreja apontam para o céu indicando a religiosidade de seus habitantes.
Minha primeira admiração, ao chegar de São Paulo, foi descobrir que havia chuveiro na casa que aluguei. Pensava eu que, indo morar no interior do Ceará, deveria tomar banho de cuia, como antigamente, quando morei no interior da Paraíba.
Infelizmente a cidade estava às escuras. Não havia energia elétrica. A luz de Paulo Afonso ainda não chegara ao litoral cearense. Tínhamos uma precária iluminação particular fornecida pela fábrica de tecidos Santa Tereza. E apenas para alguns privilegiados. Demorei a entrar no grupo.
Paulatinamente fui descobrindo os encantos do Aracati. O principal, o magnífico é sem dúvida a praia de Majorlândia, apesar de todo primitivismo, sem luz, sem telefone, sem estrada, a gente sentia lá uma sensação de bem-estar e de felicidade.
O clima da cidade é adorável. Na calçada de nossa casa era um deleite sentar-se à tarde para ser acariciado pela brisa que sopra do mar para o sertão - conhecido vento do Aracati. E à noite formávamos uma roda de pessoas alegres e animadas. Nossa casa ficava na rua Cel. Alexanzito, ou rua grande, como era chamada, uma rua um pouco curva, cheia dos sobrados da época de ouro da cidade.
Em Aracati mantem-se ainda vivas algumas tradições nordestinas como o pastoril, onde, no tempo em que morei na cidade, atuava o Zé Batata autoproclamado o melhor cão do Aracati. Tínhamos belas e concorridas procissões - como a de São Sebastião, para a qual ocorrem os filhos de Aracati que moram em outras cidades, corridas de jangadas, dança dos cocos, etc... Entretanto a grande festa do Aracati é sem dúvida o carnaval. Este sim é muito animado, vibrante até demais, e não se limita aos três dias. A brincadeira começa no sábado gordo e se prolonga até a quarta-feira de cinzas. Há belos e interessantes desfiles de blocos e muita brincadeira com água e goma, algo semelhante aos entrudos. E tanto é animado o carnaval de rua como o dos clubes.
Nas épocas das cheias o rio Jaguaribe sai do leito e atinge os bairros periféricos, acontecendo, em raras ocasiões, que chegue a cobrir toda a cidade que assume então ares de Veneza, pois se passeia de barco pelas suas principais artérias.
Quando cheguei em Aracati estranhei o paradeiro. Eu vinha de uma trepidante cidade paulista – Sorocaba- e encontrei um lugar onde o trânsito era pequeno. As ruas eram tranquilas. E a estagnação era tão sensível que eu escrevi um artigo para o jornal local: Se “Rip Van Winkle” (personagem de um conto escrito por Washington Irving em 1819) fosse aracatiense... Se ele acordasse na época contemporânea será que encontraria alguma diferença entre o Aracati do tempo em que adormecera e o de agora? Talvez não. Noutro artigo comparei Aracati com a Bela Adormecida do Vale do Jaguaribe. Parecia que a cidade estava esquecida e abandonada pelos poderes públicos.
A água potável de Aracati vem de longe, pois no terreno da cidade, nas margens do rio, todos os poços cavados dão água salobra. A melhor água é a do Morrinho. Que delícia! Nenhuma água mineral se lhe compara. No meu tempo a água vinha carregada em carroças-pipas, de tração animal. O aguadeiro batia na porta e nos enchia os potes enquanto o seu burro esperava pacientemente.
Aracati é terra de gente muito inteligente e espirituosa. Não é à toa que é conhecida como terra dos apelidos e por essa razão Castorina tornou-se famosa. Entre seus mais célebres apelidos figuram os dos dois bispos - D. Manoel da Silva Gomes, o “Bolo Enfeitado”, pois ele era gordo e muito engalanado nas vestes, era o tempo dos bispos e arcebispos vestidos com a pompa do renascimento. Seu sucessor, D. Antônio de Almeida Lustosa, era mais simples e se vestia unicamente com uma batina preta e como era muito magro a Castorina chamou-o de “Envelope Aéreo”. Outro apelido interessante foi aplicado ao major e médico preto que apareceu no Aracati - Noite Ilustrada. Ainda encontrei a Castorina viva ganhando uns míseros trocados como funcionária municipal, mas em tais condições ela foi quem ganhou um apelido do povo - Bateria descarregada.
Tive a honra e satisfação de participar de movimentos comunitários como, por exemplo, o que tratou de aparelhar o Hospital Santa Luiza de Marillac. Começamos comprando com as arrecadações um aparelho aspirador de secreções e chegamos, ao final, através do Conselho Comunitário, a conseguir uma mesa de operações e a vinda de bons operadores para Aracati.
Apesar de todas as opções de lazer que existiam na terra eu sentia um pouco minha solidão interior - nada de literatura, ciências e artes. O grande assunto era a vida alheia, muito interessante, não resta a menor dúvida, como muito pitoresco e inusitado, entretanto algo que se esgota rápido como o espoucar da bolha de sabão do fuxico. Nem a fertilidade imaginativa dos aracatienses conseguia manter sempre acesso o fogo dos assuntos.
Viver no Aracati foi para mim experiência valiosa e inesquecível. Cidade culta e civilizada.
Zorrillo de Almeida Sobrinho é escritor. Texto gentilmente cedido por Antero Pereira Filho.