[...] a comunidade do Cumbe tinha conhecimento de que nas dunas do local havia vários objetos (cacos de cerâmica, pedras em forma de pilão, cachimbos, etc.). Esses vestígios já faziam parte do imaginário da comunidade, que criou algumas histórias para explicar o que eram aqueles objetos encontrados nos morros de areia. Questionados sobre o que são esses materiais encontrados nas dunas, os moradores do Cumbe explicaram como os vestígios foram parar nos morros do local:
(...) não, o pessoal dizia assim que antigamente morava os escravo nos morro né, ai morava gente ai, ai morreu ai e agora tá desenterrando as coisa dos pessoal que mora nos morro e por ai ficava (...) a gente encontrava aquelas panela né, a frigideira, cansamo de ver farol que jogava no chão (...)108 É, quando eu era criança, essas machadinhas foram muito desperdiçadas aqui nessa região, por que as pessoas encontravam, e meu avô morou muito tempo numa casa que era em cima aqui da duna, e eu ia lá catar lenha, debaixo do fogão ele guardava as pedras, ele dizia que era Pedra de Corisco (...)109 Rapaz, meus pais... as vezes eu menino, achava muita coisa, muito prego, muito achava canivete, achava muita coisa... Achava umas pedra, umas pedrinhas, que eles diziam que era... que era machado dos índios. Machado pra eles tirarem fogo né, que era o fogo. Aquilo que ele podia aproveitar ele trazia. Um prego, ele trabalhava nos cata-ventos, usava aquele prego, prego bom, prego bom mesmo (...)110
São relatos sobre a possível presença de negros e índios que habitavam as dunas, e que teriam deixado os resquícios da sua passagem pela área. Na maioria das narrativas, a história é contada pelo pai, pelo avô, ou algum parente próximo e, como no local ninguém se reconhecia como descendente de índio, era difícil compreender que ali, em algum momento do passado, havia uma população indígena. “(...) o que me chamava atenção é que aqui no Cumbe ninguém dizia: ‘Eu sou neto’..., embora tenhamos um pouco do sangue indígena, ninguém dizia, ‘eu sou neto, bisneto, tataraneto de índio, entendeu?”111 Além disso, era complicado entender porque os moradores no passado escolhiam os morros, que atualmente são um grande campo de areia solta e sem vegetação, para realizarem suas atividades cotidianas.
“(...) então outra coisa, era as concha de ostra certo, por que esse hábito de comer ostra ainda é presente (...) ninguém pegava... tirava ostra lá no mangue, pra ir comer em cima da duna! Entendeu? No morro que nós chamamo de morro limpo (...) aí passava e tinha aquele monte de ostra ali, aí dizia ‘dos índio, dos índio’, aí eu olhava e ‘menino, povo doido, vim comer ostra aqui’, mas também ninguém da comunidade vinha dizer que era índio.”112
Os habitantes do Cumbe, portanto, desde a infância percebem os vestígios arqueológicos e se relacionam com eles. Muitos são os relatos de machadinhas, pilões, pregos, dentre outros objetos, que foram reaproveitados pelos moradores. Esses artefatos também recebiam diferentes denominações, como a popularmente conhecida Pedra de Corisco, que segundo a crença é uma pedra que cai do céu no momento do relâmpago, “Eles diziam que quando tinha o relâmpago aí caia essa pedra, descia não sei quantos metros de chão a baixo e depois a areia, quando o vento ia escavando, a pedra aparecia”.113
As histórias contadas pelos moradores são sempre precedidas de palavras que demonstram as imprecisões dos relatos: dizem..., um dia..., me parece... O que torna a narrativa muito mais fantástica e, de certo modo, interessante, pois demonstra a capacidade da população de explicar e, de certa maneira, se envolver com aqueles artefatos e assim tornar os vestígios parte da sua realidade, da sua história de vida.
As diferentes interpretações do que são os artefatos arqueológicos, bem como sua reutilização pelas comunidades locais são muito comuns. Luana Teixeira (2011), em seu trabalho a respeito das igaçabas de Palmeira dos Índios, relata que muitos moradores, ao encontrarem as grandes urnas funerárias, reutilizavam as vasilhas como potes para guardar água, principalmente no período da seca. Já os trabalhos de Fabíola Silva (2002) e Denise Schaan (2007), procuram compreender como as populações indígenas, interpretam os objetos arqueológicos herdados de seus ancestrais, dando um significado mítico e sagrado aos vestígios e aos lugares onde eles são encontrados. Assim, toda proposta de preservação do patrimônio arqueológico deve ser precedida por um estudo da relação (histórica, mítica, utilitária, etc.) que essas comunidades estabelecem com os artefatos localizados em seu território, somente após compreender como o grupo interpreta aqueles objetos, será possível traçar um plano de preservação, de modo que, tanto o conhecimento prévio da comunidade, como o conhecimento produzido pela pesquisa arqueológica, seja levado em consideração para que a preservação daqueles objetos possa ser efetivada e partilhada entre comunidade, arqueólogos, empresários e órgãos públicos. Portanto, para que haja um entendimento dos artefatos enquanto patrimônio, é preciso que o grupo, o principal interessado e detentor do bem cultural, compartilhe conhecimentos com os arqueólogos e participem das pesquisas de campo. Tania Andrade Lima (2007), alerta que os sítios arqueológicos não deixaram apenas um legado histórico e artístico, esses objetos transmitem “valores e tradições culturais”, de maneira que somente essas populações, que convivem e se relacionam com os vestígios há muitos anos, podem avaliar a melhor forma de preservá-los.
Preocupado com o destino daquele material que estava espalhado pelo campo de dunas do local, o professor da escola de ensino fundamental da comunidade, João do Cumbe insistiu para que o Prof. Almir Leal, em uma de suas visitas de estudo, verificasse que objetos eram aqueles nos morros, seriam Sambaquis como afirmava João? Partiu, portanto, da comunidade a primeira atitude de reconhecimento e preservação do patrimônio arqueológico no Cumbe.
Como vimos no capítulo anterior, todo esse processo irá resultar na exigência pelo Iphan que a empresa realize um diagnóstico arqueológico na área, esse diagnóstico só irá ser realizado no final de 2007 e início de 2008, quase quatro anos após os primeiros avisos por parte da comunidade. No entanto, quando os moradores do Cumbe foram surpreendidos pela instalação da usina, procuraram o órgão responsável, o Iphan, e, não obtendo resposta, procuraram o Ministério Público Estadual para garantirem a não destruição dos artefatos arqueológicos.
Somente em 2005 os moradores ficaram sabendo que ali seria construído um parque eólico, contudo os primeiros estudos na área foram feitos em 2002 pela equipe que elaborou o Relatório Ambiental Simplificado (RAS). Perguntado sobre a passagem desses pesquisadores nas dunas do Cumbe, João Luís responde com a frase que abre esse tópico: “Então é duas coisas que ás vezes eu digo é a questão da invisibilidade, nós não existimos, é como se nós não tivesse nenhuma relação com esse espaço, que ai quando eles fizeram esse RAS, nem nós aparecemos! Comunidade do Cumbe... é como se não existisse né...”114 Entretanto, [...] esse grupo mostrou que existe e lutou para participar das decisões não somente a respeito do destino dos vestígios arqueológicos, mas sobretudo, com relação ao destino do seu território, local em que vivem e que viverão seus descendentes.
XAVIER, Patrícia Pereira. Valorização e Preservação do Patrimônio Arqueológico na Comunidade do Cumbe - Aracati/CE. 2013. 141 f. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) - Iphan, Rio de Janeiro, 2013. p. 74-77
107 Entrevista com João do Cumbe, cedida à autora em 17 de dezembro de 2011.
108 Entrevista com Dna Marineide, cedida à autora em 07 de fevereiro de 2012.
109 Entrevista com Luís Antonio, cedida à autora em 21 de março de 2012.
110 Entrevista com Zé de Chiquim e Mazé, cedida à autora em 22 de março de 2012.
111 Entrevista com João do Cumbe, cedida à autora em 17 de dezembro de 2011.
112 Ibidem.
113 Entrevista com Luís Antonio, cedida à autora em 21 de março de 2012.
114 Entrevista com João do Cumbe, cedida à autora em 17 de dezembro de 2011.