História

Monday, 13 June 2016 06:54

CÓLERA-MORBO: A EPIDEMIA EM ARACATI

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[...] “Chegou de Pernambuco no dia 24 de Fevereiro próximo passado o iate Invencível, até o presente não tem descarregado; e nem mandado a correspondência para terra por lhe ter sido determinado pela polícia quarentena, visto achar-se aquela praça abraços com o cólera. Anteontem o Senhor Juiz Municipal e Delegado Dr. Miguel Joaquim de Almeida Castro, segui para a barra em companhia dos médicos, para determinar o melhor ancoradouro e os barcos que tiverem de fazer quarentena; e dizem que foram dados ao mestre do Invencível alguns desinfetantes para usar deles e seguir hoje para o porto de descarga. Confiamos no senhor Dr. Castro que não poupará meios a seu alcance para que não seja importado o cólera de Pernambuco para aqui”. 

Esta era a principal notícia estampada na coluna; “Notícias e fatos diversos”, da primeira página do jornal O Ordeiro do dia 1º de março de 1862, sábado, que circulava toda semana e tinha sua tipografia na rua do Pelourinho[1] nº 23, aqui em Aracati. 

  

As autoridades do Aracati, preocupados com a chegada da cólera-morbo em nossa cidade, montaram um lazareto no Fortim, no porto de desembarque, para que todos os viajantes que aqui chegassem ficassem em quarentena. 

  

Imaginavam que a doença viesse pelo mar, trazida por algum viajante provindo de Pernambuco, pois as primeiras notícias que nos chegaram sobre a cólera-morbo vieram de Pernambuco. Os jornais nos informavam que a situação no interior da Província era terrível. No Recife, entretanto, apenas um homem havia morrido de cólera, por ter ido ao bairro da Lapa “onde reinava fortemente a cólera morbus.” 

  

Aracati, importante e movimentado porto da Província do Ceará, recebia constantemente viajantes, vindos principalmente de Pernambuco, com quem tinha um intenso e desenvolvido intercâmbio comercial. 

  

Muitos dos viajantes afirmavam ao serem indagados sobre a cólera em Pernambuco, que as notícias eram exageradas. Tudo não passava de alarme de alguns jornais. 

  

As notícias desencontradas, deixavam apreensão na população, pois muitos ainda se recordavam da ameaça de outras epidemias como a da febre amarela, quando os aracatienses, amargaram a tristeza e o luto pelas mortes de conterrâneos. 

  

O ano de 1862 foi de um inverno rigoroso. As notícias vindas do sertão falavam das pastagens verdejantes, das plantações, das chuvas que dificultavam os caminhos e do cenário de tristeza e medo. 

  

CARTA ANUNCIA VÍTIMA DO CÓLERA 

  

Uma carta vinda do Icó, publicada pelo jornal “O Aracaty”[2], informava que um homem havia morrido com sintomas de cólera, num lugar chamado Passagem, distante 50 léguas da sede do município. 

  

A notícia da morte desse homem, no município do Icó que mantinha uma estreita ligação comercial com Aracati, indicava a possibilidade da presença da cólera-morbo nas proximidades do nosso município. Revelava esse fato que a doença poderia vir através do interior, pelo sertão, e não somente pelo mar por meio do porto, como imaginavam nossas autoridades. 

  

Icó era uma extensão do nosso município. Tínhamos contato direto e permanente com sua população devido aos interesses comerciais que nos eram comuns. 

  

1862, ano que o inverno trazia a esperança de boa safra, de resultados positivos para nossa economia, também conduzia o medo, a tristeza e a incerteza. Restavam somente a esperança e a confiança em Deus, de que esta terrível doença não chegasse até nós. 

  

Infelizmente, as notícias que vinham de longe, foram chegando cada vez mais perto e se transformando em realidade, fazendo da esperança que ainda tínhamos luto e pesar. 

  

ALERTAS D'O ARACATY 

  

O jornal “O Aracaty” no final do mês de fevereiro, preocupado em bem informar, publicou um editorial alertando e oferecendo sugestões às autoridades e ao povo em geral, para as medidas que deveriam ser tomadas com a finalidade de se evitar a epidemia da cólera-morbo, que a cada dia mais se aproximava de nosso município. 

  

Assim começavam as recomendações: 

  

“ Tem-se observado que em tempo de cólera não é acertado sair pela manhã de casa em jejum, não se devendo tal fazer sem primeiro tomar algum alimento ou pelo menos uma xícara de café preto. Convém também, como meio preservativo, soprar uma pitada de enxofre em pó dentro das meias aqueles que costumam andar com ela todos os dias, e, os que não tem este uso, trazê-lo em um saquinho amarrado contra o estomago.” 

  

Lendo esta recomendação nos dias atuais, nos parece uma piada engraçada, porém na época que se manifestou a cólera-morbo em Aracati, esta recomendação era de uma verdadeira e grande seriedade, uma medida prática de quem já tivera algum conhecimento da manifestação e atuação da doença em outros lugares. 

  

Continuando o editorial o jornal conclamava as autoridades para as medidas que deveriam ser adotadas: 

  

“Não podemos deixar de chamar a atenção da Câmara Municipal, das autoridades do lugar, para que tomem algumas medidas preventivas, que se achar a seu alcance e incentivando a todas as pessoas deste município e principalmente desta cidade, façam com que desapareça este espírito de indiferentismo, todo filho de uma verdadeira ignorância e selvagismo; depois tudo está perdido, e não é no meio da confusão geral que se encontrará remédio pronto.” 

  

Uma das recomendações mais insistente era a respeito do nosso matadouro público. Eis a sugestão do articulista do jornal sobre o estado em que se encontrava o nosso matadouro: 

  

“Que removam o matadouro público para um lugar a margem do rio onde se possa escoar o sangue que ali fica derramado sobre o chão, formando o maior foco impuro, que aqui temos, enviando diariamente pútridos miasmas sobre a população. Se não for, por ora, possível a remoção do telheiro, que se mate ao sol, porém em outro lugar mais espaçoso, e não lageado e onde o sangue se não se amontoe, porém fique sujeito a infiltração do solo e a ação da ventilação e raios do sol; é melhor assim e como já foi, antigamente nosso matadouro, do que presentemente temos.” 

  

Segundo Abelardo Costa Lima, nosso antigo matadouro público ficava ao lado do prédio da extinta fábrica Tabajara no bairro da Gamboa. 

  

Outras recomendações se seguiam: 

  

“Façam caiar e trazer na possível limpeza os cárceres públicos e vazar diariamente as cloacas ambulantes. Proíbam que se depositem dentro da cidade couros salgados, solas e courinhos curtidos assim como também as peles curtidas”. 

  

Nesse período ainda havia em Aracati uma indústria do couro bastante desenvolvida. Vários curtumes fabricavam seus produtos que eram exportados através do nosso porto para todas as regiões do país. 

  

UM LUGAR PARA ENTERRAR AS VÍTIMAS 

  

Uma preocupação importante se relacionava com o sepultamento daqueles que viessem a sucumbir pela ação nefasta e mortal da cólera-morbo: 

  

“Façam marcar para o enterramento dos coléricos um lugar na coroa que separa o rio em dois braços, outro na parte além do braço grande; o terreno virgem do nosso cemitério, sendo de um massapé forte e rijo recusa-se a ser cavado com facilidade e presteza, o que não se encontra os dois lugares lembrados: além de que ainda outra razão há, para que tais enterramentos não devam ser feitos no cemitério municipal, que vem a ser, ficarem as sepulturas intactas para sempre, o que a prudência, se não a experiência, muito aconselha.” 

  

Os sepultamentos dos coléricos, na verdade aconteceram não na coroa do rio como queria o articulador do jornal “O Aracaty,” mas sim no cemitério municipal São Pedro, no terreno nos fundos do cemitério atrás da capela. Esta parte do cemitério realmente ficou isolada e intacta por mais de 100 anos. Somente agora mais recentemente, foi permitido cavarem covas e fazerem túmulos naquele local. 

  

Acreditavam os antigos que, se aquele terreno onde foram enterrados os coléricos fosse removido, o mal voltaria com a mesma intensidade. 

  

Os coléricos não tiveram sepulturas individuais, todos foram enterrados em valas comuns, devido à grande quantidade de mortos e à dificuldade em cavar o “terreno rijo de massapé do nosso cemitério” que havia sido inaugurado no ano de 1860, construído pela Câmara Municipal. 

  

INCESSANTE CLAMOR D'O ARACATY 

  

Depois das recomendações e advertências feitas pelo jornal “O Aracaty” em seu editorial, a Câmara Municipal tomou consciência do perigo iminente, e fez publicar um edital baseado no código de posturas do município, contendo medidas proibitivas sobre práticas e costumes que havia na cidade como: 

  

“criar porcos soltos e nos quintais, estender pelas ruas e portões couros salgados, solas e courinhos, e depositar o lixo e imundícies no rio sob pena de serem multados”. 

  

Infelizmente ainda não havia naquela época a política benfazeja e correta de cuidar do meio ambiente, o rio era então o depósito para onde se destinava todo o lixo e imundícies da cidade a fim de que a água levasse para longe da cidade. 

  

A reação da imprensa e do povo em geral se manifestou nos diversos artigos que foram escritos nos jornais locais, depois do edital da Câmara Municipal. Numa nota publicada no jornal “O Aracaty”, o colunista não concordando com as medidas adotadas pela Câmara assim externava: 

  

“Com o alarme do cólera-morbus tem-se obrigado aos donos de porcos desta cidade ir por-los fora, isto tem feito com que os donos tenham preferido matá-los, para vender a carne ao povo. Pelo que, não se ver, e nem se ouve, senão todas as carreiras a pegar porcos, e por toda a parte o grunir destes animais, gemendo com a dor do punhal. Com efeito, as autoridades deviam sim proibir a venda da carne de porco, tão reconhecida por nociva e indigesta; talvez tantas diarreias que vão aparecendo, sejam devido ao grande consumo que se está fazendo dela, ao contrário deviam proibir essa mortandade nesses animais que geralmente falando, andam soltos pelas ruas e vizinhanças da cidade fazendo serviço que fazem os corvos, que vem a ser, limpar as imundícies e fezes que por toda a parte se lançam. Enfim julgamos, que menos mal fazem os porcos vivos que mortos.” 

  

Noutra nota, um leitor escreve ao redator do jornal fazendo uma denúncia: 

  

“Sr. Redator, na rua da Parada em uma das casas novas pertencentes ao Sr. Bento Colares, mora um moço, cujo sobrenome é a denominação porque é conhecida uma das mais terríveis onça dos nossos sertões. Este moço entendeu que de um quarto da casa que habita, devia fazer Comua (latrina) e com efeito assim tem praticado, achando-se o tal quarto como a mais imunda parte da ribanceira do nosso rio. Pouco me importaria com este bom gosto dele se acaso semelhante costumes não fosse contra as regras de higiene pública, e em uma quadra como a que atravessamos.” 

  

Aproveitando o ensejo, a ocasião em que os leitores se declaravam à respeito das medidas adotadas pelas autoridades, o redator servindo-se da sua posição resolveu também externar sua crítica: 

  

“Na verdade custa a crer que a Câmara Municipal e a autoridade policial tendo dado ordens para que seja limpa a cidade, tenha o Sr. Fiscal só cuidado de regos para esgotar as águas da chuva, e de aterros nas lagoas, pouco se importando com a situação do mercado público onde impera a sujeira e a podridão.” 

  

MEDIDAS PREVENTIVAS  

  

Ainda no começo do mês de março, a pedido o Juiz Municipal Dr. Joaquim de Almeida Castro, a Câmara Municipal se reuniu em sessão extraordinária com a finalidade de colocar em pratica as medidas preventivas e profiláticas para combater a cólera-morbo que ameaçava invadir nossa cidade. Dessa reunião extraordinária, criou-se uma comissão de notáveis do Aracati, com o dever de apresentar sugestões e medidas que fossem necessárias para resguardar a população da epidemia que se anunciava. Essa comissão formada pelos seguintes senhores: Pe. Tito José de Castro Silva Menezes (presidente da Câmara), Dr. Irineu Brasiliano de Carvalho (médico), Dr. Domingos José Pereira Pacheco (médico) Dr. Joaquim Miguel de Almeida Castro (Juiz Municipal) Vicente Ferreira Gomes (Juiz de Direito) e Hipólito Cassiano Pamplona (Bacharel). 

  

As medidas recomendadas pela comissão estavam em total sintonia com as aconselhadas antes pela Câmara em seu edital publicado no jornal “O Aracaty”. O que se acrescentou foi somente o apelo ao Presidente da Província para que mandasse para o Aracati 

            

“dez ou doze ambulâncias de remédios aplicáveis ao tratamento do cólera ou autorização para contratá-las, ao caso de necessidade, com qualquer das farmácias do lugar.” 

  

Além do pedido de uma quantia necessária para a “abertura de 3 enfermarias de 20 leitos cada uma, e montadas com os utensílios para o tratamento dos coléricos, sendo uma no centro e duas outras nas extremidades.” 

  

PRIMEIRA SUSPEITA DO CÓLERA NAS CERCANIAS DO ARACATI 

  

No dia 15 de abril de 1862, surgiu a primeira notícia da provável presença da cólera no nosso município. No lugarejo chamado Brito – atualmente distrito de Itaiçaba – distante três léguas e meia de Aracati, havia um homem muito doente com suspeita da doença. 

  

De imediato seguiram para o local, o Delegado de Polícia, Dr. Joaquim de Almeida Castro que também exercia a função de Juiz Municipal, o padre Pinheiro e os dois médicos aqui residentes na cidade, o Dr. Irineu de Carvalho[3] e o Dr. Domingo José Pereira Pacheco[4]. 

  

Infelizmente ao chegarem ao local onde morava o pobre homem, este havia morrido. A família esperava somente a chegada do Pe. Pinheiro para fazer a recomendação do corpo para o sepultamento. Os médicos, entretanto, fizeram o exame do cadáver e concluíram que: 

  

“muito provavelmente o indivíduo havia sucumbido a um forte ataque de indigestão que pela sua gravidade apresentara muito sintomas que se assemelhava as do cólera. O que muitas vezes acontece.” 

  

O medo e a dúvida fizeram com que o delegado, mesmo acreditando no que os médicos diziam, resolvesse tomar as medidas preventivas de enterrar o cadáver no campo e queimar a barraca de palha em que morava. 

  

Este fato foi o primeiro sinal de que a cólera se aproximava e estava mais perto do que se imaginava e logo se estenderia terrivelmente por todo o imenso município do Aracati, que se estendia desde os limites de Mossoró, englobando os atuais municípios de Jaguaruana, Itaiçaba, além de uma parte de Beberibe, no caso Paripueira, que também pertencia ao Aracati. 

  

O sinal da doença se fez realidade na cidade quando, no dia 17 de abril de 1862, ocorreu o primeiro óbito causado pela cólera-morbo, um escravo do Sr. Bento Colares, comerciante residente na Rua do Comércio, atual Cel. Alexanzito.  Amanhecera com um “resfriamento geral, dores pelo ventre, e especialmente mais forte no estômago, roncos no ventre, um estado de grande agonia e perturbação.”  Foi então chamado para atender ao escravo o Dr. Irineu Carvalho que diagnosticou como sendo cólera o que estava sentindo o paciente. Convocado também para dar sua opinião, fazer o seu diagnóstico, o Dr. Domingos Pacheco discordou inteiramente do colega, dizendo que se tratava de câimbras de sangue e não de cólera-morbo como afirmava o Dr. Irineu Carvalho. Estavam quase no fim dessa polêmica conferência médica, quando o doente, que tinha 60 anos de idade, faleceu na frente dos dois médicos.  

  

Dois dias depois desse caso, em 19 de abril, um homem da Volta veio trazido numa rede diretamente para a igreja Matriz a fim de receber os últimos sacramentos e receber extrema-unção. Estava o doente desde às 9 horas da noite do dia anterior com vômitos e obrando muito. Seu estado era de um resfriamento geral. Depois de receber os sacramentos foi conduzido para uma casa na Gamboa[5], onde recebeu a visita do Dr. Domingos Pacheco que diagnosticou a doença como sendo uma indigestão mesmo diante das palavras aflitas de sua mãe que dizia que “aquele homem não parecia ser seu filho e sim o de um cadáver” prognosticando perante o médico que “aquilo não poderia ser uma simples indigestão, porém algo muito mais grave”. 

  

Convidado pelo Dr. Pacheco para também examinar o doente, o Dr. Irineu após verificar o estado do paciente, declarou que era um caso de cólera-morbo confirmado. Não convencido do diagnóstico do colega, o Dr. Pacheco sustentava que era apenas uma indigestão. O homem da Volta faleceu algumas horas depois de ser examinado pelos dois médicos. 

  

O terceiro caso de óbito sucedido na cidade resultou no falecimento de uma escrava do Sr. José Caminha. A sua senhora ao vê-la vomitar líquido começou a ministrar-lhe chá de ipecacuanha. Não tendo melhorado, já que os vômitos persistiam e abundantes; “e estando a escrava toda resfriada e sentindo câimbras pelas pernas e um estado de inquietação e agonia, a pele pouco elástica, a voz fraca e grande perturbação nos ouvidos”, foi chamado o Dr. Irineu que disse ser “cólera-morbo o mal que a doente padecia.” Apesar de ter ministrado todos os remédios do seu conhecimento para salvar a triste paciente, infelizmente não obteve sucesso e a escrava veio a falecer no dia seguinte pela manhã. 

  

O que se comentou depois, a respeito do caso, é que a dita escrava do Sr. José Caminha, tinha muita intimidade com o escravo do Sr. Bento Colares que também falecera de cólera, e que a escrava ficara com o cachimbo do falecido e dele vinha fazendo uso, tendo se contagiado pelo contato. 

  

DIAGNÓSTICOS  

  

A dúvida quanto a causa da morte das três primeiras vítimas dividia a opinião dos médicos envolvidos no diagnóstico. Enquanto o Dr. Irineu de Carvalho afirmava ser cólera, o Dr. Domingos Pacheco insistia serem câimbras de sangue. O povo, por sua vez reclamava uma definição acertada para o problema que o afetava. 

  

A polêmica chegou então às páginas do jornal “O Aracaty” que assim se expressava num dos seus editorais: 

  

“Agora dirigimo-nos aos Srs. Médicos residentes nesta cidade pedindo que a bem do interesse geral, e esclarecimento do público discutam estes casos que aconteceram para que se chegue a uma conclusão, pois até agora a opinião dos dois é conflitante.” 

  

No entanto, para a população, não havia a menor dúvida de que os falecimentos ocorridos eram mesmo pelo vibrião da cólera-morbo, era mesmo o início de uma tragédia que se materializava. Os fatos faziam o povo se recordar dos tristes dias da epidemia de febre amarela no ano de 1856, quando vidas preciosas de aracatienses foram ceifadas pela doença, inclusive a do caridoso e estimado médico inglês aqui residente, Cristóvão Mallet[6]. 

  

A verdadeira confirmação de que as pessoas acreditavam ser este “surto” a cólera, pode ser verificado numa nota de jornal, nas palavras de um conformado leitor tentando elevar o nível de desânimo dos aracatienses apreensivos: 

  

“resta-nos agora termos a necessária coragem para debelar este inimigo. Dispondo-lhe primeiro que tudo, confiança em Deus e toda observância dos conselhos e regras higiênicas: Nada de esmorecer, nem desanimar, pois combatido o mal logo no princípio do ataque, a cura é fácil e pronta.” 

  

A discussão entre os dois médicos terminou somente no dia 26 de abril de 1862, quando Dr. Domingos Pacheco ficou convencido diante da grande quantidade de afetados, e do incessante badalar e repicar dos sinos da Matriz anunciando mortes o dia inteiro, dia e noite, que se tratava mesmo de cólera-morbo. 

  

COMISSÃO DE SOCORRO EM ARACATI 

  

Diante do inevitável, o governo da Província assumiu a posição de comando, nomeando para o Aracati uma comissão de socorro composta das pessoas mais representativas da cidade, para que coordenassem todas as atividades e tomassem todas as providências a fim de proteger a população contra a epidemia. Uma das primeiras medidas foi a montagem de um hospital para o atendimento aos mais desvalidos, o envio de medicamentos para todos os lugares distante da sede da cidade e a contratação de médicos para o atendimento aos coléricos que se espalhavam por todo o município... 

  

Para Canoa Quebrada um dos lugares mais afetados pela cólera-morbo, foi mandado o médico Barreto Nobre, contratado pelo governo para atender àquela população terrivelmente castigada pela epidemia. Para Passagem de Pedras (Itaiçaba), foi designado o Dr. Firmino Candido Figueiredo, que prestou relevantes serviços também ao povo do Cabreiro afetado pela doença que a todos castigava sem piedade. 

  

Ao final do mês de abril, o obituário já havia registrado 19 mortes e a estatística oficial informava que mais de 200 pessoas estavam afetadas pela cólera. As pesadas chuvas que caíram no começo do mês de maio dificultaram sensivelmente o trabalho de combate à cólera. As enfermarias continuavam lotadas de doentes e a informação oficial divulgava que já se contabilizavam mais de 82 mortos desde o início da epidemia. 

  

MAIO MARCADO PELA TRAGÉDIA 

  

O dia 5 de maio de 1862 ficou marcado para sempre na memória dos aracatienses que viveram aquela tragédia. Na noite anterior havia caído um forte temporal com uma trovoada ensurdecedora que causou pânico na população e alagou toda a cidade. Ao amanhecer do dia, a população foi despertada com o repicar fúnebre do sino grande e do sino pequeno da Matriz anunciando os funerais. A notícia das mortes que ocorreram durante a noite se alastrou por toda cidade. Ao todo haviam morrido 15 pessoas que estavam acometidas pela cólera, muitas delas internadas nas enfermarias. Tempos depois, ao se comentar o pavor daquela noite, muita gente afirmava que aquela prolongada trovoada havia acelerado a morte de muita gente. 

  

Foi uma data fatídica para a população do Aracati, dada a ocorrência do falecimento do maior número de pessoas com cólera, num só dia. Para alguns não houve tempo nem de receber os sacramentos, tiveram de ser sepultados na vala comum dos coléricos no terreno designado para esse fim nos fundos do cemitério de São Pedro, sem receber a recomendação do corpo por não haver tempo, nem padres suficientes para atender ao costume e ao desejo dos familiares. Os enterros se sucediam um após outro durante todo o dia 5 de maio, uma verdadeira procissão macabra, um cortejo de defuntos sendo conduzidos em redes ao longo da rua do cemitério para serem sepultados. Um dia de juízo final para o povo de Aracati, que diante desse acontecimento, foi tomado por um misto de desânimo e desespero. 

  

Em meados de maio o jornal ”O Aracaty” informava que já haviam morridos 114 pessoas vítimas da cólera no município e estampava as notícias vindas de vários lugares: Em Passagem de Pedras, os doentes estavam em pleno restabelecimento e os novos afetados melhorando com os primeiros remédios. Em Cabreiro muitas eram as pessoas afetadas, mas o mal vinha cedendo com os remédios. Em Canoa Quebrada, muito afetada pelo mal, já haviam morridos, até aquela data, mais de 8 pessoas e ainda havia muita gente doente. Em Jiqui poucos eram os doentes, igualmente em Paripueira onde havia poucos doentes. 

  

BAIXAS DE JUNHO 

  

No começo do mês de junho de 1862, a informação era de que até aquela data haviam sidos sepultados no cemitério de São Pedro 257 pessoas todas vítimas da doença. 

  

Como não poderia deixar de acontecer, pois isso sempre sucede em época de calamidades, os aproveitadores de ocasião também apareceram durante a epidemia de cólera em Aracati, na forma do charlatanismo, iludindo e enganando os doentes que viviam fora da cidade com remédios sem nenhum valor terapêutico. Depoimentos escritos denunciando os crimes desses charlatões diziam que as causa da própria doença e o descuido da população em não atender como deveria aos conselhos médicos se fez juntar: 

  

“uma outra que não concorreu pouco para ceifar muitas vidas, referimo-nos a uma dúzia de charlatões tão estúpidos e perversos como a própria cólera. Estes homens sem alma, parece que assentaram de dar a mão ao flagelo para aumentar a horrível carnificina que ela ia fazendo, e se por um lado iam desacreditando a medicina, por outro munidos de beberagens, que só a cólera lhes poderia sugerir foram matando a torto e a direito.” 

   

  

Ao final do mês de junho contabilizavam-se mais de 300 pessoas enterradas no cemitério local, todas vítimas da cólera, somente no mês de junho haviam morridos 65 pessoas de cólera na cidade de Aracati, mas as notícias vindas do interior anunciavam que em diversos lugares do município a doença estava quase extinta.   

  

TRATAMENTOS EXÓTICOS E INGÊNUOS 

  

Durante a epidemia de cólera surgiram muito tipos de tratamentos que hoje são considerados extravagantes, exóticos e até mesmo cômicos para os nossos dias e para a medicina da atualidade. Porém naquela época eram aconselhados e acatados por muitos doentes, receitados não por charlatões, mas por quem tinha algum conhecimento terapêutico medicinal. Eis alguns desses tratamentos indicados para se livrar e curar da cólera-morbo:   

  

“As roupas deverão ser quentes e neste fim, será bom trazer por cima dos vestidos um outro fácil de tirar, mas que ajuste até o pescoço sobre tudo. Tem muito acertadamente recomendado o uso do calçado e de uma cinta de lã para melhor proteger os pés e ventre. Não devem usar legumes cosidos como feijões, lentilhas, ervilhas, será melhor servirem-se da massa deles do que comê-los inteiro. As carnes de vaca e de carneiro, as aves voadoras, os peixes leves, o arroz, as batatas, serão os alimentos preferíveis. Evitar-se-á tomar em jejum bebidas aquosas e azedas, tais como limonadas, groselhas, laranjadas, estas bebidas frias serão muito perigosas quando o corpo estiver quente pelo trabalho ou pelo andar. As emoções vivas são para temer, bem como todos os excessos nos trabalhos do corpo e do espírito: com ânimo e sangue frio deve cada um prosseguir em suas ocupações ordinárias, evitando vigílias e mui grandes ou mui frequentes desperdícios de forças corporais.” 

  

Estes são conselhos de um Homeopata. 

Um outro tratamento um tanto estranho para se curar da cólera-morbo: 

  

“Em caso de que o mal resista e se torne o doente em estado complicado, isto é, todo resfriado como um cadáver, se cuidará logo de fazer com que o calor volte e nesse fim se empregarão, sinapismo de mostarda ou malagueta nos pés, barrigas das pernas, coxas e braços; rodear-se-á o corpo com garrafas com água quente ou tijolos quentes, e até, com fogareiros com brasas; a tudo isto se ajudará com o esfregamento por todo o corpo com escova ou baeta molhada em aguardente com mostarda ou malagueta ou canforada dando-se também a beber desta última.” 

  

  

Exaltando os efeitos positivos, práticos, e benfazejo da utilização da pimenta malagueta no tratamento da cólera-morbo um entendido ensinava que: 

  

“A indicação que fizemos da pimenta malagueta tem por base o resultado que se tirou de seu emprego, já no Pará e assim também na Bahia, onde segundo notícias fidedignas muita gente se tratou com pimenta tirando dela feliz resultado e até em caos desesperados; sendo que viram-na salvar doentes abandonados e em cujos tratamento se haviam esgotados todos os recursos da ciência. Sendo certo ainda que na Ásia país do cólera-morbus por excelência, para combatê-lo usam de comer uma papa de pimenta em alta dose, estando verificado, que os que não morrem logo depois que a comem, salvam-se.” 

  

  

E finalmente o mais ingênuo e simplório meio de se proteger contra a cólera-morbo: 

  

“Trazer efetivamente um saquinho com enxofre em pó, amarrado sobre o estomago com uma faixa de baeta.” Esta era a maneira que um rico proprietário em nossa cidade declarava para estar sempre protegido contra a manifestação colérica que havia atacado seus vizinhos, e segundo ele, passados já 54 dias da influência do mal no Aracati nada tinha sentido. 

   

  

NOTÍCIAS ALVISSAREIRAS 

  

A notícia ansiosamente aguardada pela população foi estampada em manchete na primeira página do jornal o Aracaty, no dia 06 de agosto de 1862: 

  

 Comunicado – “Temos a satisfação de anunciar que depois que entrou o presente mês até hoje, não consta tivesse sido mais pessoas alguma atacada do cólera-morbus, e nem tão pouco que dos que se achavam em convalescência houvesse morrido alguém nesse período dentro da cidade. Parece-nos que enfim a providência, por sua divina misericórdia, suspendeu dentre nós este terrível flagelo.” 

  

No dizer do historiador Thomas Pompeu, a mortalidade em todo o termo do Aracati, que contava 19.667 habitantes atingiu 1.000 pessoas, sendo 450 na cidade. Jamais saberemos na verdade quantos morreram de cólera em todo território do Aracati, pois muitos moradores de fora da cidade que morreram vítimas da cólera-morbo, tiveram por sepulturas as covas rasas nos campos onde viviam e nos caminhos onde faleceram, vindo em busca de recursos. A verdadeira estatística dos obituários nunca foi seguramente comprovada. Ao findar a triste epidemia que assolou perversamente por mais de 100 dias os aracatienses, os órgãos da imprensa da Capital ao divulgar o computo, baseado nas informações oficiais, divergiam entre si sobre o número exato dos mortos. Na cidade de Aracati, segundo afirmava o jornal “O Cearense,” haviam sucumbido 650 pessoas vítimas do fatídico mal.


[1]  Ao sul da cidade no final da atual Av. Cel. Alexanzito 

[2] Jornal Publicado em Aracati, fundado em 7 de setembro de 1859 

[3] Médico originário do Rio Grande do Norte, residente em Aracati 

[4] Médico aracatiense, aqui residente 

[5] Atualmente Bairro de Fátima 

[6] Sepultado ao lado da calçada da Igreja Matriz 

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Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

Assim me Contaram. (1ª Edição 1996 e 2ª Edição 2015)
Histórias de Assombração do Aracati. Publicação do autor. (1ª Edição 2006 e 2ª Edição 2016)
Ponte Presidente Juscelino Kubitschek. (2009)
A Maçonaria em Aracati (1920-1949). (2010)
Aracati era assim... (2024)
Fatos e Acontecimentos Marcantes da História do Aracati. (Inédito)
Notícias do Povo Aracatiense (Inédito)

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Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.