Em 1923, no jornal O Nordeste, uma polêmica interessante foi travada entre alguns intelectuais, sobre quem deveria ser aclamado o grande herói da greve dos jangadeiros levada a cabo em janeiro e agosto de 1881. O trecho acima, publicado em 29 de junho na comemoração do aniversário de um ano do jornal, foi escrito pela educadora Alba Valdez, a mesma que, em 1910, publicou o artigo Uma data cearense em um compêndio didático. O texto abordava o significado do dia 25 de março para o Ceará.123
O tema da abolição da escravatura e a ação dos jangadeiros em 1884 são novamente abordados pela autora. Mais uma vez, ela exalta a capacidade cearense em ter abolido a escravidão quatro anos antes da libertação total do Brasil em 1888, não esquecendo a atuação dos homens do mar. O trecho acima demonstra o tom dramático da narração. Nele fica confirmado para Alba Valdez que o principal responsável pela paralisação do porto foi o Dragão do Mar.
Além de Francisco José do Nascimento ter sido aclamado como o principal herói da campanha, seu feito, ou seja, o episódio do trancamento do porto, foi apontado como a ação que teria levado ao fim a escravidão no Ceará. Isso significa que para a escritora, caso a greve não tivesse ocorrido, a libertação dos escravos não teria acontecido em 25 de março de 1884. Assim, o herói responsável pelo principal acontecimento da campanha abolicionista no Ceará era mais uma vez lembrado em uma ocasião especial. Nesse caso, o aniversário de um ano de um importante periódico cearense.
O trecho que gerou toda a polêmica e foi responsável pela publicação de mais quatro artigos ao longo do final do mês de junho e início do mês de julho no jornal O Nordeste não é o citado acima, mas a continuação dele. Depois de apresentar o jangadeiro Nascimento e seus atos heróicos, Valdez trata da viagem do Dragão do Mar à corte imperial nas comemorações pela libertação dos escravos do Ceará em 1884.
Tempos depois (não se haviam extinguido de todo os rumores festivos da abolição da província) as equipagens e passageiros das embarcações que perlustravam as águas litorâneas do Rio, vislumbraram a distancia uma forma branca... Dir-se-ia asa de enorme pássaro, que, fatigado de cortar o éter, baixasse sobre a trêmula ventosa, a deslizar. Ela vencia a extensão oceânica que vai àquelas alturas a ampla curva da incomparável baía da Guanabara – Uma jangada?!- exclamaram os das embarcações, entre duvidosos e surpreendidos. Era de fato a jangada cearense, levando a seu bordo o Dragão do Mar e dois companheiros. Afrontando os obstáculos da travessia desconhecida para eles, aventurosa, sem precedentes nos anais da navegação brasileira, iam os impávidos mareantes, epígonos de combate heróico, reafirmar além das fronteiras da praia nativa, o valor adamantino de uma têmpera e inserir mais um motivo de glória na tradição de uma raça.124
A viagem de Francisco José do Nascimento, acompanhado de dois companheiros para participar das festas em comemoração à abolição do Ceará na capital do Império em 1884, proporcionou, na época, uma divulgação nacional da personalidade do Dragão do Mar. A corte do Rio de Janeiro recebeu os cearenses em festa, vários artigos foram publicados em jornais e revistas, contendo reportagens e imagens sobre o jangadeiro que era apontando como líder da greve do porto no Ceará.
Consultando os periódicos do período em que Chico da Matilde “desfilou” pelas ruas do Rio de Janeiro, é possível perceber o quanto o texto de Alva Valdez foi influenciado pela narrativa propagandística encontrada nos jornais cariocas do final do século XIX. Ainda que não tenha consultado os opúsculos publicados no Rio de Janeiro, muito provavelmente para escrever o artigo Valdez folheou alguns números do jornal O Libertador de 1884, que tratou de transcrever trechos dos jornais da corte, descrevendo a viagem dos cearenses e sua recepção na Baía de Guanabara com riquezas de detalhes.
Alguns dias depois da publicação do texto de Alba Valdez, no dia 05 de julho de 1923, Rodolfo Teófilo125 publica um pequeno texto intitulado “O Dragão do Mar”. O texto é dirigido à escritora Alba Valdez. Com a missiva, que não havia sido entregue diretamente à escritora, mas publicada em jornal, Rodolfo Teófilo pretendia responder ao artigo escrito por Valdez e publicado no dia 29 de junho de 1923.
Rodolfo Teófilo, logo no início da carta, esclarece que seu objetivo é restabelecer a verdade histórica. O que interessa para o presente estudo, contudo, não é estabelecer a verdade, isto é, não se pretende verificar se, de fato, Chico da Matilde era ou não jangadeiro, ou se o líder da greve foi, em vez de Nascimento, o negro liberto José Napoleão. A pergunta que surge é: Como a imagem do jangadeiro no Ceará foi atrelada ao Dragão do Mar? O jangadeiro (assim como o vaqueiro e o agricultor pobre) é considerado símbolo do Ceará, tipo que, mesmo enfrentando as dificuldades climáticas, é exemplo de força, coragem e bravura126. Ou ainda: o que provocou a disputa em torno das memórias sobre José Napoleão e o Dragão do Mar? Por que o liberto José Napoleão não está inscrito na “memória dos cearenses”?
O fato de Alba Valdez ter dado a entender que o Dragão do Mar era jangadeiro e que havia viajado ao Rio de Janeiro em uma jangada foi o motivo da discussão gerada em torno dos heróis. São esses os pontos contestados por carta resposta de Rodolfo Teófilo, publicada em 05 de julho de 1923 no Jornal O Nordeste:
D. Alba Vadez. Envio-lhe muito saudar. Peço licença para reestabelecer a verdade histórica sobre Francisco do Nascimento, o dragão do mar. Este nosso companheiro da campanha abolicionista não foi ao Rio de Janeiro em uma jangada, e sim abordo do vapor “Espírito Santo”, com dois companheiros, levando a jangada, a qual, fundeando o navio, foi lançada ao mar e sulcou a Guanabara até o caes. Francisco do Nascimento era prático-mor e não jangadeiro; nunca foi, como reza a lenda, ao Recife roubar escravos. Há uma figura completamente apagada hoje, a do liberto José Napoleão, que grandes serviços nos prestou nos memoráveis dias de nossas lutas contra negreiros. Felizmente os grandes generaes da abolição, José do Amaral, João Cordeiro, João Carlos da Silva Jatahy, Izac Amaral, ainda vivem e podem dizer se é ou não verdade o que affirmo. A propósito da estátua que querem levantar ao dragão do mar, escrevi àquelles amigos sobre a individualidade e serviços de Francisco do Nascimento e as repostas delles pretendo inserir em uma memória sobre o elemento servil no Ceará, que estou escrevendo. Do seu confrade e grande admirador.
Rodolpho Theophilo.127
O fato de Rodolfo Teófilo ter publicado em jornal a missiva está relacionado ao seu desejo de “reestabelecer a verdade histórica”. A resposta divulgada no mesmo jornal que Alba Valdez havia exposto seu artigo informava não apenas à escritora seu erro, mas todos os leitores do periódico seriam avisados sobre quem de fato havia sido e o que havia feito o Dragão do Mar. Teófilo cumpria, assim, sua função de esclarecer o acontecimento considerado o mais importante da campanha abolicionista. Além disso, o fato de ser lembrado como abolicionista que havia participado ativamente da campanha conferia ao farmacêutico autoridade suficiente para elucidar os acontecimentos ligados à “data magna” do Ceará.
Além de tratar da viagem de Francisco José do Nascimento ao Rio de Janeiro, o escritor lembra outro herói que, segundo ele, é “figura completamente apagada hoje”, porém importante para que a greve do porto acontecesse: José Napoleão. Ele não havia sido citado em nenhum momento pelo artigo de Alba Valdez, que dá todos os créditos da greve a Francisco José do Nascimento. Interessante perceber que para justificar e legitimar seu discurso Rodolfo Teófilo cita alguns abolicionistas vivos, João Cordeiro, Silva Jatahi, Issac Amaral e José do Amaral, eles poderiam, enquanto testemunha dos feitos passados, confirmarem a “verdade histórica” defendida pelo escritor.
A resposta de Valdez não tarda. No dia 07 de julho de 1923, mais uma vez pelas páginas do jornal O Nordeste, a escritora publica o texto intitulado A verdade histórica. O documento foi uma resposta a uma carta enviada por João Cordeiro. Com a carta, o famoso abolicionista procurou elucidar alguns pontos tratados por Valdez no artigo Os jangadeiros, de 29 de junho de 1923:
[...] Para isso tenho que me ocupar ainda da individualidade do Dragão do Mar, natural de Aracaty e antigo comandante de um “cutter” que transportava carga daquelle porto para o da capital, conforme J.C. [...] Não consta que elle se dedicasse aos serviços inherentes aos jangadeiros, como a pesca e o transporte de bordo para a terra e vice-versa; porque – já foi dito alhures – as suas funções tornavam-no superior àqueles em cujo meio vivia continuamente. [...] Quanto ao Dragão do Mar haver saído na mencionada jangada do porto de Fortaleza para o Rio, cumpri-me declarar que tal não escrevi em “Os Jangadeiros”. [...] Se empreguei expressões travessia desconhecida para elles, aventurosa, sem precedentes na navegação brasileira – foi na inteira persuasão de que estava com a verdade. E ainda me mantenho nesse pé. Os destemidos caboclos que tripulavam a jangada “Liberdade” fizeram galhardamente a travessia que vai das proximidades da ilha Rasa ao ponto de desembarque na capital do país, desconhecendo o caminho marítimo que percorriam [...] Já estavam escritas essas linhas, quando se me deparou no número de hontem deste jornal uma carta que me dirigiu o illutre escritor Rodolpho Theophilo. Como o objeto da carta se prende ao assunpto que acabo de tratar, serve esse artigo de resposta a mesma. 128
Antes de responder a João Cordeiro, Valdez elogia o abolicionista dizendo que o respeitava e tinha uma grande admiração por ele: “[...] João Cordeiro abolicionista e republicano de tradições”. Para a escritora era uma honra receber uma carta assinada com as iniciais J.C. Além disso, a mensagem proporcionava uma oportunidade de a autora esclarecer pontos do polêmico artigo.
Os pontos abordados por ela tratavam da profissão de Francisco José do Nascimento e da sua viagem ao Rio de Janeiro. Com relação ao primeiro ponto, Alba Valdez parece incorporar as correções de João Cordeiro, justificando, porém, a afirmação de que o trabalhador era jangadeiro. Assim, explica que, mesmo que Chico da Matilde não fosse jangadeiro, trabalhava próximo aos jangadeiros. Como superior, conseguiu a adesão dos trabalhadores para que o porto fosse fechado. Na opinião de Valdez, portanto, o Dragão do Mar deveria ser lembrado como o responsável pela paralisação das embarcações que faziam o transporte de escravos entre a praia e os navios. Na segunda questão, mais polêmica, Valdez alega que foi mal interpretada. Explica sua posição dizendo que não havia dito no artigo anterior que o Dragão do Mar havia feito a travessia entre Fortaleza e Rio de Janeiro a bordo de uma jangada.
Importante atentar para o fato de que ela responde a João Cordeiro e não a Rodolfo Teófilo, mesmo que a resposta já estivesse escrita. Quando a autora leu a mensagem a ela dirigida e publicada em jornal, poderia ter optado por escrever outro texto, até porque o escritor Rodolfo Teófilo não toca apenas nos pontos abordados por João Cordeiro. Teófilo trata de outra figura que teria tomado parte na greve, o liberto José Napoleão. Contudo, em seu novo escrito, Valdez não faz referência alguma ao “herói esquecido”, citado por Teófilo.
A memória acerca de quem havia sido o grande herói da greve dos jangadeiros não foi um processo ameno. As contendas sobre os detalhes do passado, quem, como e quando, eram importantes para a definição de um tipo, que, por suas ações, deveria ser rememorado e glorificado. Mais que isso, os personagens que lembravam ou definiam quem deveria ou não ser eleito como herói estavam travando uma disputa que não ficava restrita aos fatos do passado, mas estavam relacionados também às altercações políticas vivenciadas pelo presente de quem recordava.
No dia 24 de julho de 1923, O Nordeste volta a tratar do Dragão do Mar em um texto intitulado O Jangadeiro Nascimento. A mensagem é dirigida ao “Sr. Redator d´O Nordeste”.
Lendo um dos últimos números do vosso conceituado jornal deparou-se me interessante “carta bilhete” do Sr. Rodolpho Teophilo, dirigida a escriptora cearense d. Alba Valdez, em a qual elle affirma que Francisco do Nascimento, não era jangadeiro e sim prático-mor. Bem sabemos em que se funda a asserção de S.S., mas contudo, faz-se preciso esclarecermos o caso em apreço. Francisco do Nascimento, quando em 1863, mais ou menos, chegou a Fortaleza, era um modesto jangadeiro trabalhando em pequenos “cutters” e jangadas, conforme o testamento do velhinho pescador Francisco Costa e outros contemporâneos que ainda hoje residem na cidade de Aracaty. A sua primeira nomeação foi para um logar de 2º prático do Porto de Fortaleza, por acto de 8 de junho de 1874, do Sr. Conselheiro João Joaquim Rodrigues Pinto. Mais tarde, isso em 1880, assumia, então o exercício do cargo de prático-mor, do qual fora suspenso em 3 de Fevereiro do anno seguinte, por ter tomado parte nas festas abolicionistas que se realizaram em Pacatuba. Devido a valiosa intervenção de um seu grande amigo, ficou sem efeito o acto arbitrário que o suspendera. Reconhecendo os relevantes serviços prestados pelo legendário “Dragão do Mar”, o governo provisório, por carta Patente de 04 de Dezembro de 1890, nomeou-o para o posto de Major Ajudante d´Ordens, Secretário geral do Commando Superior da Guarda Nacional da capital do Estado do Ceará. Foram estes os cargos mais importantes occupados por Nascimento. Aqui fica portanto, rectificada a affirmativa do Sr. Rodolpho Teophilo, podendo estes dados servirem para a memória que está escrevendo sobre o elemento servil do Ceará. Com os meus agradecimentos pela publicação desta, sou vosso amo. atto. grto.129
A carta não foi assinada, porém mediante outra resposta, datada de 28 de julho de 1923, é possível inferir que o autor da missiva era J. Neto130. Apesar de haver sido publicada em O Nordeste em 24 de julho, a correspondência é datada de 21 de julho de 1923. O autor defendendo Alba Valdez trata o assunto com ironia, trazendo um novo argumento ao debate. Em sua opinião, Rodolfo Teófilo estava enganado ao afirmar que Francisco José do Nascimento não era jangadeiro, pois, segundo o depoimento oral de um velho pescador, morador de Aracati (município onde o Dragão do Mar nasceu), Chico da Matilde havia iniciado a vida trabalhando em “pequenos cutters e jangadas”.
Além de trazer um novo argumento ao debate, o depoimento de um “velho pescador”, J. Neto apoia sua narrativa na descrição das datas e cargos ocupados pelo Dragão do Mar desde que chegou a Fortaleza. Com isso, o defensor de Alba Valdez provava que, mesmo que não tivesse participado da campanha abolicionista, era conhecedor do assunto debatido. Ao lembrar que Francisco José do Nascimento havia sido nomeado “Major Ajudante d´Ordens” e “Secretário geral do commando da Guarda Nacional do Estado do Ceará”, J. Neto reforça a importância do Dragão do Mar para a abolição do Ceará. De certa forma, esclarece porque ele era lembrado como o responsável pela greve dos jangadeiros, mesmo que outros tenham contribuído tanto, ou mais, para que do porto do Ceará não se embarcassem escravos.
Quatro dias após a publicação do bilhete, J. Neto divulga novamente no jornal O Nordeste, uma carta respondendo a um artigo de Rodolfo Teófilo, de 27 de julho de 1923, no jornal Correio do Ceará. 131 Por intermédio de nova missiva, percebe-se novamente o tom irônico e agressivo, defendendo o fato de o Dragão do Mar ser um jangadeiro.
Voltou, hontem o “general” da abolição dos captivos, Rodolpho Teophilo, pelas collumnas do “Correio”, a ocupar-se da individualidade do legendário jangadeiro José Nascimento. Quer o Sr. R. Teophilo, por força provar que Francisco Nascimento não era jangadeiro; entretanto, affirma que não sabe quando elle aqui chegou da cidade de Aracaty. [...] Enfim, a polêmica de s.s. em torno de tão esclarecido assumpto carece de fundamento. O que precisamos no momento é levantar a brilhante idéia do illustre commandante Frederico Villar de erigimos, nas praças de Fortaleza, uma estátua ao mesmo, uma herma ao immortal jangadeiro, monumento cuja execução ficou a cargo da altruística sociedade “Deus e Mar”, e não perdermos o precioso tempo com coisas de menor valor, Portanto, ponto final.132
O pseudônimo de J. Neto esconde a personalidade que contraria as opiniões de um respeitado benemérito cearense da envergadura de Rodolfo Teófilo.133 Enquanto participante ativo da campanha abolicionista, o trabalho de Isaac Ferreira do Vale Neto esclarece:
Esse reconhecimento de Teófilo como abolicionista histórico, somado a suas vivências, dava-lhe o poder de deliberação devidamente autorizado sobre a temática, especialmente quando ele passa a evocar sua presença testemunhal como referencial para pronunciar-se sobre o assunto.134
A altercação provocada pelo fato de Francisco José do Nascimento ser ou não jangadeiro está relacionada com uma disputa política ligada ao passado dos interlocutores que pretendiam edificar uma memória do Dragão do Mar e também construírem a narrativa sobre a sua própria participação no movimento abolicionista.
O Ceará foi governado de 1898 a 1912 pela oligarquia de Nogueira Accioli. Ao longo desse período, o farmacêutico Rodolfo Teófilo exerceu ferrenha oposição ao grupo acciolino. Em virtude disso, recebeu fortes críticas nos jornais situacionistas. Com a queda da oligarquia, os jornais passaram a divulgar as ações humanitárias de Teófilo, contribuindo com a divulgação de sua imagem como benfeitor cearense.
Os textos enaltecendo Rodolfo Teófilo eram escritos não apenas por seus amigos e partidários, mas também pelo próprio romancista, que, em idade avançada, utilizava-se da imprensa para edificar seu legado. Além de se preocupar com as personalidades que eram lembradas ou esquecidas, Teófilo parecia se incomodar, sobretudo, com a forma como ele seria lembrado.
Mesmo depois da deposição de Accioli, alguns de seus antigos partidários continuaram publicando textos que colocavam em dúvida as ações de benemerência do farmacêutico, suspeitando, inclusive, de sua atuação no movimento abolicionista, evidenciando que os ressentimentos provocados pelas altercações políticas iniciadas no período de accioli ainda estavam presentes. As notas de J. Neto, publicadas em 21 e 27 de julho de 1923 no jornal O Nordeste, mostram que as discussões sobre a profissão de Francisco José do Nascimento têm relação direta com as batalhas políticas do presente. Mais uma vez, Rodolfo Teófilo vem a público defender os personagens que eram por ele considerados injustiçados. Ao fazê-lo, está construindo sua própria memória, pois, segundo ele: “Se o indivíduo tem valor intrínseco passará à posteridade.”135
Entre as figuras esquecidas, vou occupar-me do liberto José Napoleão. Escravo do norte do Estado pediu licença para vir trabalhar em Fortaleza e alforrear-se. A sua excelente conducta e capacidade de trabalho no ânimo do senhor concedendo-lhe o que pedia. Aqui chegando entrou como trabalhador da capatasia da casa inglesa então de propriedade de Singlihurts & C. O conheci desde sua chegada a esta capital. Era um homem de estatura mediana, musculoso, de côr escura, entre o cabloco e o preto, physionomia agradável, calvo aos 30 annos pelo serviço de carregar para bordo das lanchas volumes pezados. Nesse tempo o embarque e desembarque de passageiros e mercadorias era ainda peior do que hoje. Os passageiros iam e viam de bordo em jangadas e os gêneros de esportação e importação embarcavam e desembarcavam na cabeça dos trabalhadores da praia.136
O grande herói da greve dos jangadeiros, segundo Teófilo, foi o liberto José Napoleão. Interessante observar que, apesar de lutar pela lembrança de Napoleão, em vários escritos o farmacêutico diz estar escrevendo um trabalho sobre o Dragão do Mar. Além disso, apoia a ideia de construção de uma estátua homenageando Nascimento. Apesar de anunciar constantemente a escrita de uma memória sobre o elemento servil no Ceará, nem a memória sobre a escravidão no Ceará, nem o trabalho sobre o Dragão do Mar foram publicados. O farmacêutico faleceu em 1932, antes das comemorações do cinquentenário em 1934.
Enquanto J. Neto defende a atuação do Dragão do Mar, apresentando dados precisos sobre as funções que o herói teria ocupado, Rodolfo Teófilo reforça o fato de José Napoleão ter sido um escravo e ter comprado sua própria alforria e a de seu irmão por meio do trabalho – o que valoriza sua atuação no movimento abolicionista. Contudo, Napoleão não embarca para a corte e não recebe nenhum título ou comenda, não se sabem suas datas de nascimento e morte, também não se dispõe de notícias de seu senhor.137
Francisco José do Nascimento pode não ter sido um jangadeiro, mas entrou para a escrita da história como: Dragão do Mar, o jangadeiro da abolição, conforme o título da biografia do jornalista Edmar Morel, publicado em 1949. Seus feitos foram homenageados em todas as ocasiões em que a campanha abolicionista era rememorada. Assim, a jangada e o jangadeiro cearense passaram a ser sinônimo de coragem, força e liberdade.
As ocasiões em que Chico da Matilde era lembrado, porém, não se restringem às datas relacionadas à abolição, mas também se estendem às datas relacionadas com seu nascimento e morte. Em abril de 1939, os cearenses comemoraram o centenário de nascimento de Francisco José do Nascimento. A data exata é 15 de abril de 1939, dia em que o Dragão do Mar completaria 100 anos, caso estivesse vivo. Dois jornais locais publicaram notas de primeira página comentando a efeméride. O jornal Unitário e O Estado traziam, respectivamente, as seguintes manchetes: “O centenário do Dragão do Mar no dia de hoje” e “Hoje Centenário do Dragão do Mar: de obscuro jangadeiro a celebridade nacional”. Além da notícia, os dois periódicos estamparam a fotografia do jangadeiro:
Decorre, hoje, o 1° centenário do nascimento desse cearense humilde, que, por um gesto de elevado patriotismo e excelsa humanidade, se tornou figura de todo relevo no cenário histórico da nossa terra: Francisco José do Nascimento, cognominado DRAGÃO DO MAR. Nascido em Aracati, a 15 de abril de 1839, e falecido em Fortaleza em 5 de abril de 1914, foi ele, chefiando com o liberto Napoleão um núcleo de intrépidos homens do mar, quem, revoltado com o infamante trafico da escravatura, ergueu o grito de santa rebeldia: “No porto de Fortaleza não se embarca mais escravos”.138 (Grifo do autor).
Os dois periódicos reforçam a “origem humilde”139 do jangadeiro Nascimento, não esquecendo de mostrar como um trabalhador conseguiu alcançar as homenagens que só aos grandes heróis são reservadas. Além da pequena apresentação biográfica sobre Nascimento, os jornais, com o objetivo de mostrar a importância histórica das ações desempenhadas pelo Dragão do Mar, publicaram um fragmento da descrição da chegada de Chico da Matilde à corte imperial em 1884.
O documento divulgado nos jornais de 1939 foi retirado da edição de 23 de abril de 1884, do jornal Libertador. O trecho aborda as festividades organizadas para recepção, dizendo que, apesar de ser dia útil, as ruas estavam cheias, as casas decoradas. Por fim, o jornal Unitário conclui: “Francisco Nascimento não é, portanto, um herói feito de pé pra mão. É um verdadeiro herói. [...] A jangada de Nascimento atravessará serenamente o vasto mar da nossa história – como o inimersível símbolo da liberdade dos escravos do Ceará e no Brasil inteiro.”140
De fato, as previsões do jornalista parecem ter se concretizado.
XAVIER, Patrícia Pereira. O Dragão do Mar na “Terra da Luz”: a construção do herói jangadeiro (1934-1958). 2010. 141 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 57-66.
122. JORNAL O NORDESTE. Fortaleza, CE, 29/06/23. p. 3.
123. Esse artigo foi trabalhado no primeiro capítulo quando é feita uma reflexão sobre a historicidade do dia 25 de março.
124. JORNAL O NORDESTE. Fortaleza, CE, 29/06/23. p. 3.
125. Rodolfo Teófilo nasceu em 1853, era farmacêutico, romancista, historiador. Foi professor de Ciências Naturais no Liceu do Ceará e membro de diversas sociedades culturais. Na seca de 1877, combateu a epidemia de varíola, trazendo para o Ceará o processo de fabricação da vacina. O escritor é considerado até hoje um grande benemérito no estado, sua incansável campanha pela vacinação de 1901 a 1910 e sua constante preocupação com os pobres e desvalidos valeram a Rodolfo Teófilo muitas comendas e homenagens. Ver: VALE NETO, Isac Ferreira do. Batalhas da memória: a escrita militante de Rodolfo Teófilo. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.
126. “Na sua luta contra as manifestações hostis da natureza, o homem cearense adquiria os adjetivos de trabalhador heróico, que manifestava suas tentativas de sobrevivência frente às intempéries como se fortalecesse no cumprimento de uma obrigação moral” (OLIVEIRA, 2001, p. 205).
127. JORNAL O NORDESTE. Fortaleza, CE, 05/06/23.
128. JORNAL O NORDESTE. Fortaleza, CE, 29/06/23.
129. JORNAL O NORDESTE. Fortaleza, CE, 21/07/23.
130. Em outro texto intitulado A jangada abolicionista, publicado na Revista da Sociedade Cearense de Geografia e História em 1938, associação da qual a autora fazia parte, Valdez trata da participação dos jangadeiros na greve e lembra a polêmica de 1923: “- O Dragão do Mar não era jangadeiro. – Era jangadeiro. Questão de lana caprina. Diz-me com quem andas... O interessante, porém, é que ao tempo dessa contenda, honrosa para mim por todos os fácies, surgiu nas colunas de ‘O Nordeste’, a arena em que se desenvolveu a pugna intelectual, um trabalho assinado por J. Neto e intitulado O jangadeiro Nascimento (V. “O Nordeste” de 24 de julho de 1923), em que o autor provou com dados suficientes a razão de ser da minha expressão. Depois soube que J. Neto era o pseudônimo de um parente do Dragão do Mar”.
131. Não foi possível encontrar tal artigo, pois o único exemplar do jornal se encontra no Instituto do Ceará, porém em péssimas condições de conservação, o que impede a consulta.
132. JORNAL O NORDESTE, Fortaleza, CE, 28/07/1923.
133. Não existem outros indícios, além do comentário de Alba Valdez de que J. Neto era o pseudônimo de um parente do Dragão do Mar.
134. VALE NETO, Isac Ferreira do. Batalhas da memória: a escrita militante de Rodolfo Teófilo. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.
135. JORNAL GAZETA DE NOTÍCIAS. Fortaleza, CE, 04/06/30.
136. Ibid.
137. Existe apenas uma rua na cidade de Fortaleza com o nome de José Napoleão. Ela está localizada no bairro do Meirelhes, próxima à Avenida Beira Mar.
138. JORNAL O ESTADO. Fortaleza, CE, 15/04/39. p. 1.
139. JORNAL O UNITÁRIO. Fortaleza, CE, 15/04/39. p. 1.
140. JORNAL O UNITÁRIO. Fortaleza, CE, 15/04/39. p. 1.