História

Tuesday, 20 July 2021 14:41

DE “PORTO DOS BARCOS” À VILA: O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA VILA DO ARACATI

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Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. Aracati-CE. Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. Aracati-CE. Detalhe de aquarela de José dos Reis Carvalho.

[...]só a partir da segunda metade do século XVIII, quando predominaram orientações pombalinas sobre a política e a economia portuguesas, o território dos sertões da capitania geral de Pernambuco foram de fato inseridos nos projetos de colonização da Coroa Portuguesa. Antes disso, a insistente comunicação entre os funcionários régios e a administração que se concentrava em Lisboa era a única maneira de “pressionar” o rei por medidas de impor justiça nos sertões.

Reside aí a peculiaridade da fundação da vila de Santa Cruz do Aracati. Sua criação se dá antes mesmo dessas medidas empreendidas pelo Marquês de Pombal e baseou-se, principalmente, em justificativas de controle econômico que era bastante incomum para os sertões, que até então só eram “agraciados” com vilas onde se buscasse um controle da justiça e da administração régias. Aqui torna-se evidente o que chamamos [...] de um “segundo momento” do projeto colonizador dos sertões. Nesse momento a conquista já consolidada permitiu o crescimento econômico daquelas paragens que até então sofriam com violência demasiadas para se tornaram fundamentais nas dinâmicas dos circuitos mercantis. É bem verdade que o cotidiano violento daqueles sertões perdurou ainda por muitos anos, todavia o controle dos gentios e a distribuição de patentes nos sertões fizeram com que, de certa forma, fosse promovida certa ordem para que se os sertões do Siará Grande fossem inseridos nas dinâmicas imperiais portuguesas. No mapa a seguir podemos observar a localização das vilas do Siará Grande criada entre 1700 e 1802.

Antes mesmo de se iniciarem os pedidos para a criação da vila, no início da década de 1740, o autor da História da América Portuguesa noticiava, no ano de 1730, sobre o conhecido e movimentado porto do Aracati de Jaguaribe, sua produção e comércio de carnes secas. De acordo com Rocha Pita (1976, pp. 55-56)

Vinte léguas para o Rio Grande, tem pelo sertão uma povoação formosa com o nome do Rio Jaguaribe, que por ela passa, o qual seis léguas para o mar forma uma barra suficiente para embarcações pequenas, que vão a carregar carnes de que abunda com excesso aquele país.

O comércio chamou atenção também da administração régia um ano antes de iniciarem os pedidos de criação da vila. Em setembro de 1742, o rei D. João V faz provisão acerca daquele comércio aos oficiais da Câmara da Vila de São José de Ribamar do Aquiraz, autorizando impor

(...) a cada hum dos Senhorios e Mestres dos Barcos que entrao todos os annos no porto do Aracati dessa Cappitania do Ceará a pensão de pagarem outo mil reys pello barco que levar de mil arrobas [de carnes secas] para sima e o que carregar de mil aroubas pa[para] bayxo Seys mil reis e quatro mil reis o que for carregar Courama tudo para ajuda das despezas desse senado que por serem muytas e não ter rendas donde as possa suprir. (...)46.

O rei, comentando a cobrança de imposto anterior à sua decisão final, afirma, no mesmo documento, que lhe

(...) pareceu dizervos, que nem vos nem o ouvidor podíeis impoa a dta[dita] pençao sem preceder licença minha; o que se nos extranha muy severamente ordenandovos restitueis os donos dos barcos o q’ indevidamente lhe tendes extorquido não pelos bens do Conco[Conselho, i. é. a Câmara] mais sim pellos dos officiaes que acordarão na dta[dita] imposição47.

Sua Majestade então fez questão de impor sua decisão ao criticar a cobrança anterior e ainda mandar devolver o arrecadado com tais impostos indevidos. Mas o que chama atenção no documento é a “preocupação” dos vereadores da vila do Aquiraz em taxar um porto dos barcos que a princípio seria relativamente distante e de pouca importância, já que boa parte da arrecadação de impostos era mesmo com a cobrança do dízimo sobre os gados no sertão. Parece que o lugar do porto dos barcos a que chamavam Aracati de Jaguaribe possuía uma dinâmica social e econômica que se diferenciava dos demais “portos do sertão” da capitania que recebiam e, geralmente, embarcavam mercadorias nos barcos que aportavam.

Depois da autorização dada aos oficiais da Câmara do Aquiraz pelo rei D. João V para a cobrança de impostos sobre as embarcações que entrassem para carregar carnes e courama, parece que as pessoas “daquele lugar do porto dos barcos”, onde de fato eram produzidas e comercializadas as carnes secas e couros, incomodaram-se e, através do Ouvidor Geral e do Capitão-mor, passaram a requerer a criação de uma vila naquele “porto do sertão”.

Pouco mais de um ano depois da dita autorização para a cobrança de impostos, o rei D. João V já respondia uma carta enviada, em 8 de junho de 1743, pelo Capitão-mor do Ceará, Francisco Ximenes de Aragão

(...) sobre ser conveniente q’ no lugar do Aracaty de Jaguaribe dondo portão os barcos q todos os annos vão ahy fazer carnes aSsistisse hum Tabam [Tabelião] da Va[Vila] do Aquiraz emqto[enquanto] os mesmos barcos se ditiverem no dto[dito] lugar pa[para] se evitarem varias dezordens a respto[respeito] q’mandado informar ao ouvor [Ouvidor] daquela capnia[capitania] respondeu o que vereis da sua carta tãobem se vos remete copea, dizendo ser conveniente q’ no dito lugar se erija hua Va[Vila] plo[pelo] que mandey q por ora fosse hum juiz ordinário da Va[Vila] do Aquiraz e hum tabelião assistir no dto[dito] lugar do Aracati na occasiao do concurso dos barcos48.

A medida imposta pelo rei era apenas imediatista e deslocava um juiz ordinário e um tabelião para a povoação do Aracati com o intuito de fazer justiça naquele “porto do sertão”, onde a população aumentava e o comércio dinamizava as relações sociais fazendo crescer o número de habitantes do lugar. As consequências disso podem ser percebidas numa carta do próprio Capitão-mor da capitania do Siará Grande Francisco Ximenes Aragão, quando se encontrava na povoação do Aracati, em que ele endossa o pedido de criação da vila

(...) porque tãobem haverá menos morttes, e Não haverá tantos crimes, porq este anno furtarão uma molher cazada, e Em riba matarão o marido a espingarda pella querer defender, sem haver castigo deste, e outros semelhantes que Lá estão sucedendo todos os annos de que me pareceu dar conta a V.Magde [Vossa Magestade] para que como Rey, e Snro[Senhor] lhe mande por remédio Sobre o que mandara o que for Sirvido49.

Além do Capitão-mor, o Ouvidor Geral da capitania do Siará Grande, Manoel José de Farias, no mês de julho de 1744, ao ser consultado pelo Conselho Ultramarino sobre a necessidade de criação da vila, responde que

Deu conta V. Mage[Vossa Magestade] o Cappam[Capitão] Mor q’ foi desta cappnia[capitania] D. Franco[Francisco] Ximenes de Aragão sobre o quanto era conveniente a justiça hi dos juízes ordinários desta Va[Vila] do Aquiraz com hu taballião no Lugar di Aracaty ao menos em o tempo que ao dto[dito] lugar vem quantidade de embarcaçõens fazer carnes e isto pellas razoes q’ a V. Magde ponderou e se deixão ver da copea da carta do tal Capam Mor que se me remeteu a Respeyto do Contheudo nella informar com o meu parecer: lhe é sem duvida ser muito conveniente haver justiça naquelle lugar porq alem de haver nelle muitos moradores quando o He no tempo das carnes [e] oficinas se faz muito populoso pela concurrencia de muitas somacas e gente q’ dessem destes sertões com inumeraveis gados a fazerem suas negociaçoens donde haum haverem muitas contendas muitas pendenciaz e alguãs mortes50.

As palavras do Ouvidor Geral confirmam a do Capitão-mor e endossam junto ao Conselho Ultramarino o pedido de criação da vila no povoamento do Aracati, tendo assim uma motivação principal: fazer justiça naquele lugar quando “He no tempo das carnes”, isto é, durante a produção e a comercialização das carnes secas na chamada barra funda que se formava durante uma parte do ano. Ainda segundo o mesmo Ouvidor

(...) no cazo q’se crie hua Va[Vila] que verá a ser a corte deste Seara em brevez annos por ficar nas margens do rio Jaguaribe navegável as mesmas somacas em distancia de três legoas e de facto ao seu porto todos os anos vinte sinco e mais q a troco de fazendas que trazem levam a carne e courama de dezoito ate vinte mil boys para Pernco[Pernambuco], Bahia e Rio de Janeiro e fundando-se com effeito a da[dita] Va não só fica havendo aquelle juiz mas tão bem com os vereadores e almotacés e outros officiaez de justa[justiça]51.

O Ouvidor, além de concordar com a criação da vila em Aracati, elogia aquela povoação, que virá a ser “a corte deste Seara em brevez annos” pela localização próxima à foz do rio Jaguaribe, tornando-a mais próxima à capitania de Pernambuco e às outras capitanias do norte do Estado do Brasil. Mas o Conselho Ultramarino, talvez desconfiando de tantos elogios a uma pequena povoação, consulta o governador da capitania geral de Pernambuco sobre a necessidade de se criar uma vila em Aracati de Jaguaribe. E em maio de 1746, Henrique Luis Pereira Freire de Andrada, residente no Recife desde 1737 e certamente conhecedor do trato que havia entre os homens de negócio daquela praça do Recife com os “portos do sertão”, reconhece a

(...) necessidade q’há da dita ereção [pois] acho ser percizo de fato eregirse porquanto vão aqueller mtos[muitos] barcos da Ba[Bahia] a’ahi vão fazer carnes e negócios e desta praça [do Recife], donde correm todas as gentes daqueller sertões a venderem gado trocando por rendas e a dinheiro e nestas ocassioens se ajuntam povo, em q’dizem há hum grande comercio e junto ser o melhor distrito q’tem toda a capitania do Seara52.

Parece que ao fim de todas estas recomendações de diversas instâncias e pessoas da administração régia na colônia, o Conselho Ultramarino se convencera da real necessidade e, talvez, da importância de se fundar uma vila na localidade que chamavam Aracati de Jaguaribe, e argumentavam em seu parecer que a “V. Magest. Se sirva mandar fundar uma villa em este porto do Aracaty” e que o ouvidor encarregado escolhesse um sítio cômodo “afim [d]as embarcaçoes e forasteiros, que vão nelas comerciar como aos moradores da ditta villa” 53. O parecer do Conselho indica ainda a cadeia pública como sítio fundador da vila, tendo em vista a importância da construção de um lugar para manter os presos da capitania, e que no meio da praça se levantará o pelourinho “e al lado dele ficarão os edifícios públicos como a Casa de câmara, cadea e mais officinas que forem necessárias ao serviço da mesma villa”.54

No entanto, uma das maiores preocupações do Conselho Ultramarino era quanto às ruas da vila, para que elas fossem num formato que os “donos das ditas casas venha o público a conseguir a utilidade desejada essa formosura da villa; que delineadas a dittas rua e chão para as casa de novos habitantes”, isto é, para que a vila pudesse crescer. Além disso, e não sendo menos importante, o ouvidor deveria

(...) definir e demarcar o Rocio ou logradouro público, no que tão bem destinará lugar para curral e matadouro publico, tendo na a escolha delles a reflexão, de que fiquem a Sotavento da villa, e junto ao Ryo para que a não ofenda o mau cheiro, e poderem ter fácil vazão as imundices55.

A preocupação do Conselho com as imundices que eram produzidas com a matança dos gados e a produção das carnes secas permaneceu nas reuniões das Câmaras, gerando disputas entre alguns agentes camarários e os donos das oficinas [...]. Também no mesmo parecer favorável à criação da Vila, o Conselho Ultramarino indica a forma que os “oficiais” da vila terão para suprirem as despesas com os órgãos públicos. A cobrança de impostos deveria ser feita depois de verificada a posse ou não, por meio de data de sesmaria, do sítio daquele porto e

(...) Remunerando V.Mage[Vossa Majestade] ao dono da terra em que portão os barcos e estão as officinas [de carnes] com officio de Tabalião da mesma villa com o rendimento das das[ditas] officinas, e doz foros das cazas que se hão de fazer de novo, Se poderão affectuar as das obraz, e ter a câmera o necessário para sua conservação56.

Depois deste parecer favorável do Conselho Ultramarino, o rei D. João V expediu ordem régia e foi criada a vila do Aracati em 10 de fevereiro de 1748. Podemos perceber assim a peculiaridade da criação desta vila: primeiro pela motivação econômica de controle da produção e comércio das carnes secas que se misturava com a subordinação daquelas partes do sertão ao poder régio e, em segundo lugar, pela constituição de um núcleo populacional de certa expressão anterior à sua fundação, isto é, ali já existia uma dinâmica própria que despertara interesse dos agentes camarários da vila de São José de Ribamar do Aquiraz e, logo depois, da administração régia na colônia. De acordo com Gabriel Nogueira, a vila de Santa Cruz do Aracati

(...) tratava-se, mesmo antes da sua elevação à categoria de vila, de um núcleo regional na ribeira do Jaguaribe. Elevado à categoria de vila, passou a desempenhar papel de destaque não somente no âmbito econômico, mas também no âmbito político, tendo em vista que, por encimar uma cadeira produtiva a nível regional, sua elite, parcialmente composta de agentes mercantis (que também se tornaram agentes políticos, pelo acesso que passaram a ter a instancias de poder e representação como a Câmara da vila) que encimavam uma cadeira hierárquica de poderes na ribeira do Jaguaribe 57.

Dessa forma, feita a análise das motivações que levaram o núcleo populacional localizado próximo à foz do rio Jaguaribe – que já possuía uma vila, a do Icó – centralizador dos caminhos das boiadas da região que iam ser vendidas e beneficiadas em carnes secas e couros a ser elevado à condição de vila, lançamos as bases para nossa discussão principal dessa pesquisa: a dinâmica social interna à vila de Santa Cruz do Aracati e a utilização de trabalho livre e/ou escravo nas oficinas de salga, relacionando também a possibilidade de uma divisão e hierarquização do trabalho.

ROLIM, Leonardo Cândido. Tempo das carnes no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c.1690-c.1802) - João Pessoa, 2012. p.87-94.


46 Lisboa, seis de setembro de 1742. Livro de Registro de provisões para entidades de algumas Capitanias do Brasil. Projeto Resgate. Documentos Manuscritos do Ceará – Códice I. AHU_ACL_CU_Códice 260. P. 317v. apud JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. 2007. 531f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. p. 499.
47 Idem.
48 Lisboa, 22 de setembro de 1743. LIVRO DE REGISTRO de provisões régias dirigidas a várias entidades de diferentes capitanias. Projeto Resgate. Documentos Manuscritos. Códices I. AHU_ACL_CU_Códice 261. Pág. 24 e 24v. apud JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. Op. Cit. p. 501.
49 AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 304. AHU-CE: CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre a necessidade de se criar uma nova vila em Aracati de Jaguaribe. Anexo: cópias de cartas e provisão.
50 Idem.
51 Idem.
52 Idem.
53 Idem.
54 Idem.
55 Idem.
56 Idem.
57 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Op. Cit. p. 89.

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