História

Saturday, 12 August 2017 10:23

A PENA DE MORTE EM ARACATI

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O ilustrado dr. Paulino Nogueira, de saudosa memória, falecido em 15 de junho de 1908, ocupou-se na Revista do Instituto do Ceará, Tomo VIII pág. 279 a 287 das execuções de pena de morte do preto Luiz, e do preto forro, Domiciano Francisco José, enforcados na Aracati em 1840 e 1852; mas como o trabalho do ilustre historiador, à falta de esclarecimentos, se ressinta de erros e omissões, que exigem correção, por isso, a bem da verdade histórica, me propus fazer esta exposição não só firmado em informações de pessoas antigas e verdadeiras, como nas peças do processo instaurado contra Domiciano e outros documentos autênticos, a fim de suprir os defeitos do referido trabalho, visto o seu autor, em consequência de sua morte, não ter podido fazer as correções devidas, de conformidade com os documentos, que lhe remeti no princípio de janeiro de 1908.

Assim pois, observando a ordem cronológica das execuções aludidas, entro na exposição.

LUIZ

Como não existe nos cartórios do Aracati o processo instaurado contra o preto Luiz, solteiro, sapateiro, escravo de D. Joaquina Eufrazia de Almeida, viúva de João da Cunha Pimenta, por haver sido remetido para a Capital da província, a fim de aí ser submetido a novo julgamento, pelo qual protestaram ele e sua cúmplice, a mulata Iria Maria da Conceição, tive de proceder a mais exigente investigação, ouvindo pessoas antigas e conceituadas, contemporâneas do fatal acontecimento, por cujas informações averiguei que o fato não se passou como referiu o dr. Paulino Nogueira, mas do seguinte modo.

Confiado nas relações íntimas e suspeitas que mantinha com D. Joaquina Eufrazia de Almeida, o infeliz Thomaz Pinto Pereira havendo em certa ocasião esbofeteado a mulata Iria, a escrava da estima da referida viúva, em consequência disto a dita mulata, que desde muito era solicitada pelo parceiro Luiz, sem nada lhe haver concedido, dirigiu-se a este, e disse-lhe que se quisesse que seus desejos fossem satisfeitos, matasse o seu agressor.

Levado, pois, pela afeição que consagrava a Iria, e não para impedir o casamento da senhora, de cujo enlace não se falava, o preto Luiz, na noite de 6 de dezembro de 1836, emboscando-se nos fundos da casa de moradia de Antonio Luiz Fernandes Bragança, sita à rua do Comércio do Aracati, nº 128, hoje próprio estadual, ocupado pela respectiva Mesa de Rendas, ai esperou a vítima, que costumava, fora de horas, ir visitar a dita viúva que então morava no sobrado sito à mesma rua do Comércio nº 142, onde entrava pelo quintal, que tinha saída pela rua Direita; e logo depois de nove horas da noite quando Thomaz Pinto Pereira, vindo de baixo, subia a mesma rua Direita e se encaminhava para o quintal de d. Eufrazia, antes de aí chegar, foi atacado nos fundos da casa de Bragança pelo preto Luiz, de quem recebeu catorze facadas, que lhe produziram a morte, feitas com a própria faca que nesse dia o infeliz lhe havia dado para amolar, e não para se defender do suposto vulto, a que se referiu o dr. Paulino Nogueira.

Assim me relatou o fato D. Gertrudes Monteiro, maior de 80 anos, matrona respeitabilíssima, viúva do coronel Joaquim Monteiro da Silva, acrescentando que os moradores da vizinha rua do Ramos, hoje do Rosário, haviam declarado que na hora e noite do crime ouviram gritar: - quem me mata é Luiz, escravo de João Pimenta, mas fica com a cabeça quebrada!

Não é, pois, exato que antes do crime Iria fosse amasia de Luiz, e nem que o casamento de D. Eufrazia com o infeliz fosse a causa da morte deste, como informaram ao ilustre historiador; e tanto, que o juiz de direito da comarca, o dr. Antonio José Machado, comunicando o fato no dia seguinte ao presidente da província, o senador Alencar, não aludiu ao referido casamento, e nenhuma referência fez ao concubinato e à cumplicidade de Iria.

Apesar de ser essa a verdade, houve quem, muitos anos depois da execução do delinquente, com o fim de deprimir de uma parcialidade política, que nenhuma responsabilidade tinha no fato, atribui-se móvel político, como se vê do jornal "A Epocha", nº 54 de 11 de maio de 1861, editado no Aracati; entretanto essa arguição não teve eco na opinião pública, nem o apoio dos parentes da vítima.

***

Instaurado o processo, no qual não se apurou a responsabilidade do cabra Geraldo, contra quem pesavam as suspeitas referidas no ofício do dr. juiz de direito ao presidente da província, somente foram pronunciados Luiz e Iria, como incursos no artigo 192 do código criminal.

Confirmada a pronúncia pelo júri de acusação, em sessão de 19 de maio de 1837, presidida pelo referido juiz de direito dr. Machado, servindo de promotor público Geraldo Correia Lima, e como escrivão Raymundo Cândido Ferreira Chaves, foram os réus submetidos a julgamento na sessão de 27 do dito mês (e não de 17, como referiu o dr Paulino Nogueira), sendo condenados Luiz à pena de morte, e Iria à prisão perpétua com trabalhos, nas cadeias de Pernambuco, como tudo consta das atas das sessões do júri, lavradas a fls. 40 e 47 do livro competente.

Interposto, embora indevidamente, pelos condenados o recurso de protesto por novo julgamento, o júri da Capital da província, confirmando a sentença do tribunal do júri do Aracati, condenou Luiz à pena de morte, e Iria à prisão perpétua com trabalhos nas cadeias da mesma Capital.

***

Não foram também exatas as informações que sobre a execução de Luiz ministraram ao ilustre historiador, como passo a mostrar, apoiado em documentos autênticos, e no testemunho do honrado octogenário, cidadão João Correia de Senna Braúna; digno de respeito, e toda consideração.

A “forca” não foi armada no largo do Pelourinho, denominado Cruz das Almas, mas em local muito diverso, isto é, em frente da cadeia e da travessa da Cacimba da rua, entre a casa de João Paulo dos Santos Brigido, e os alicerces que existem nos fundos da casa dos herdeiros do tenente-coronel Balthazar de Moura e Silva, na rua do Rosário, conforme foi designado pela Câmara municipal, em sessão extraordinária de 14 de março de 1840, cuja ata assinada pelos vereadores Joaquim Liberato Barroso- presidente, José Ferreira da Silva, Antonio F. dos Santos Caminha, Pedro José de Mattos, e Delfino José do Amaral, está lavrada às fls. 52 e 53 do livro respectivo.

Ainda não é exato que Luiz fosse enforcado em 25 de fevereiro de 1840, como afirmou o referido historiador; pois, a execução teve lugar em 17 de março do dito ano, como consta no assento de óbito do infeliz, lançado a fl. 30 do livro paroquial, que reza assim:

Luiz, preto, cativo que foi da viúva Joaquina com idade de vinte e oito anos, foi morto enforcado por mandado da justiça no dia dezessete de março de mil e oitocentos e quarenta, foi confessado e tomou o sacramento da Eucaristia, foi sepultado na capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos; encomendado de licença minha pelo Reverendo Antonio Francisco Sampaio. Do que para constar fiz este assento em que me assino. O vigário – Joaquim de Paula Galvão.

***

Não me foi possível averiguar o dia em que de Fortaleza chegou Luiz ao Aracati, para ser executado; mas assevera D. Gertrudes Monteiro que antes da execução ele esteve oito dias no “Oratório”, em casa da Câmara, assistido pelo Vigário Galvão e o padre Sampaio, onde fora muito bem alimentado.

O préstito, acompanhado pelo juiz municipal Alexandre Ferreira dos Santos Caminha, que ia a cavalo, pelo escrivão, o carrasco vindo da Capital, e a força pública, partiu da cadeia pela manhã de 17 de março, dobrando a finados os sinos dos quatro templos, tendo à sua frente o porteiro José dos Santos, conhecido por José Mãozinha, que apregoava a sentença, e subindo pela rua do Comércio, voltou para o local da forca pela rua do Piolho, hoje do Rosário.

O condenado ia algemado, sem chapéu, de baraço de barbante ao pescoço, vestido de camisa branca e calças de riscado de listas encarnadas, ladeado pelo padre Antonio Francisco Sampaio, e o seminarista José Bento Barbosa, que conduzia na mão a imagem de Cristo; não sendo exato que fosse vestido de alva, o que implicaria violação do art. 4º do Cód. Crim., e nem que o acompanhasse o vigário Galvão.

No momento da execução, que se verificou às nove horas da manhã, sendo necessário vendar o rosto de Luiz, o juiz municipal Alexandre Caminha forneceu, para isso, um lenço branco do seu uso.

A liberta Ignacia, preta, então cega, mãe do infeliz, achando-se no momento da execução em casa do farmacêutico José Teixeira Castro, próxima ao patíbulo, rompeu em lamentoso pranto, sofrendo diversas síncopes, quando se realizava o suplício do filho, que ficou pendurado na forca com o rosto voltado para a várzea, e de costas para a cadeia.

Refere o cidadão Correia Brauna, que no momento em que se verificou o suplício, houve pranto entre os assistentes; mas não ouviu declaração do infeliz de somente ele haver sido o autor da morte de Thomaz Pinto Pereira; e que o cadáver de Luiz foi conduzido para a capela do Rosário, do modo porque são levados animais suínos para o açougue!

O cirurgião-mor Luiz da Silva Carreira não podia ter assistido à execução, e atestado o óbito de Luiz, porque já havia falecido em 16 de abril de 1837, como declarou o ilustre Barão de Studart na biografia do senador Liberato de Castro Carreira, impressa na Revista da Academia Cearense, fato confirmado pela Lei Prov. nº 77 de 19 de setembro do dito ano.

O escrivão Raymundo Candido Ferreira Chaves e o comandante da força, alferes Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, que o ilustre historiador disse, e eu não contesto que houvesse assistido à execução, não eram cunhados do infeliz Thomaz Pinto Pereira.

II

DOMICIANO

Na manhã de 5 de novembro de 1850 correu na cidade de Aracati a notícia de haver pela madrugada sido assassinado dormindo em sua própria casa, na “Cacimba do povo” por sua mulher Luiz Felicia do Nascimento, e Domiciano Francisco José, o infeliz Joaquim Pereira Chaves, conhecido por “Coringa”, havendo os assassinos fugido conjuntamente.

O corpo de delito, a que logo mandou proceder o subdelegado suplente Raymundo Antunes de Oliveira, somente por um perito, o dr. Marcos José Theophilo, sem assistência e assinatura de duas testemunhas, afirma ter sido degolado o infeliz Coringa, em cujo cadáver foram encontrados treze ferimentos, feitos com instrumentos perfurantes e cortantes, de comprimento e largura desiguais; e conquanto algumas testemunhas do sumário afirmassem que um talho que havia na fronte direita do cadáver só podia ter sido produzido por machado, contudo o exame cadavérico não assinalou nominalmente esse instrumento como a causa da referida lesão.

Presos os assassinos na manhã de 6 de novembro na estrada de Praias, em distância de três léguas do Aracati, conforme o depoimento de José Lopes Coelho, testemunha do sumário, que, como soldado da escolta capturou os fugitivos, o referido subdelegado instaurou logo ex-ofício o processo contra Luiza Felicia e seu amasio e cúmplice Domiciano Francisco José.

O menor Jacintho, cuja idade não declarou, filho legítimo primogênito de Coringa e de Luiza Felicia, logo pela manhã de 5 de novembro declarou a Antonio Rodrigues da Silva e Francisco das Chagas dos Anjos, testemunhas do sumário, “que sua mãe e o preto Domiciano foram os matadores de seu pai”; referindo-se explicitamente ao último, “que estando dormindo, e acordando por uma encontroada em sua rede, viu o preto Domiciano e sua mãe estarem matando a seu pai”.

Entretanto, no dia seguinte, interrogado pelo subdelegado, já depois da prisão de sua mãe, disse perante o seu curador Cypriano Ferreira da Costa, que viu o preto Domiciano dar facadas em seu pai, e que quando isso sucedia, sua mãe correu para fora de casa; que Domiciano havia entrado em casa de seu pai, por uma janela da cozinha que estava fechada, havendo perfurado a parede em lugar próximo à mesma janela que era o talo; e que no ato do crime lhe disse: - cale-se, senão eu lhe toro o pescoço, - de que muito se amedrontou.

***

Chamada a juízo Francisca Jacintha de Jesus, mãe de Luiza Felicia, a fim de informar sobre a morte de seu genro, e sendo interrogada no dia 8 de novembro de 1850, disse:

Que há um ano mais ou menos, encontrando o preto Domiciano comendo farinha no colo de sua filha Luiza, e estranhando bastante esta ação, disse-lhe que sendo ela mulher casada, nem seu marido gostaria disso, e nem lhe ficava bem em estar assim com esse homem, mas ela lhe respondeu que isso era sem maldade; que querendo Luiza ir apanhar talos na várzea, onde para o mesmo fim, já se achava o Domiciano, a informante, porque já maldava, reprovou que ela fosse ali só, mas se opondo aos seus conselhos, ela teimou em ir, e saindo com outra irmã, voltaram zangadas com ciúmes, porque Luiza tinha ido só aonde estava o Domiciano; que em uma noite, já tarde, vendo um homem entrar em casa de Luiza, foi ter-se com ela, pedindo-lhe que fosse correr sua casa, na qual vira entrar um homem; e dando-lhe então vários conselhos, ela lhe respondeu que não se importasse com sua casa, pelo que a informante lavou as mãos, e não mais se ocupou com sua vida, e desde então seu genro e sua filha ficaram diferentes com a informante; e finalmente que as suspeitas que tinha de Domiciano eram certas, por que estava convencida que ele e Luiza tinham maldade.

***

O preto Domiciano Francisco José, que mostrava ter 35 anos, solteiro, natural do Rio do Peixe, da província da Paraíba do Norte, filho de Francisco José e Rita de Castro, há dois anos residente no Aracati, carroceiro do tenente-coronel Antonio Ferreira dos Santos Caminha, respondendo a quatro interrogatórios, assumiu exclusivamente a autoria do crime; e procurando inocentar sua amasia e cúmplice, confessou já no sumário, já no primeiro julgamento o seguinte:

Que ele próprio, à meia noite de 5 de novembro de 1850, penetrando em casa de Coringa, por uma janela que estava aberta, descarregou sobre o mesmo Coringa, que estava dormindo, cinco ou seis facadas com uma faca comprida e fina, sem o haver degolado; que foi levado a cometer esta morte, da qual estava arrependido, porque tinha certeza de ser assassinado pelo mesmo Coringa que havia jurado matá-lo, com ciúmes da mulher; que nunca teve relações ilícitas com Luiz Felicia, e sim com uma irmã da mesma.

Entretanto no último interrogatório, a que respondeu em segundo julgamento, se declarou inocente, sem, contudo, imputar a Luiza Felícia cumplicidade no crime.

***

Encerrado o sumário, em que não depuseram testemunhas presenciais, de conformidade com o parecer e requisitório do promotor público, o dr. Antonio Ferreira dos Santos Caminha Junior, o subdelegado proferiu o seguinte despacho:

As testemunhas de fl. a fls. Inqueridas por mim, no presente sumário, as perguntas e os interrogatórios feitos ao réu Domiciano Francisco José, pardo, solteiro, e a ré Luiza Felicia Nascimento, parda viúva, obriga-os a prisão e a livramento, com incursos no art. 192 do Cód. Crim., revestida das agravantes do art. 16 §§ 1º, 4º, 5º, 7º, 8º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º e 17º. O escrivão lhes intime esta, e recomende-os na prisão em que se acham, e faça expedir o presente processo ao Ilustríssimo Sr. Dr. Juiz municipal, e paguem as custas em que os condeno. Aracati, 14 de novembro de 1850 – Raimundo Antunes de Oliveira.

***

Confirmada a pronúncia no dia seguinte pelo juiz municipal, o dr. Herculano de Araujo Salles, e submetido o processo a julgamento na sessão do júri de 6 de dezembro de 1850, presidida pelo juiz de direito da comarca, o dr. Gonçalo da Silva Porto, servindo de promotor público o dr. Antonio Ferreira dos Santos Caminha Junior, de escrivão José Monteiro Pinto, e como defensores o professor de latim Porfirio Sergio de Saboia e Geraldo Correia Lima, ficou o conselho de sentença composto dos jurados: Antonio da Costa Lobo, presidente, Manuel Fidelles Barroso, secretário, Mathias Leopoldino de Oliveira, Manuel Francisco da Cunha, Antonio Emygdio Pereira Façanha, Domingos Paulo Barbosa, Izidorio Ribeiro Campos, José Paulo de Aquino, Manuel Antonio da Silva Junior, Vicente Gurgel do Amaral, Luiz Francisco Sampaio, e Manuel da Costa Junior.

Respondidos os quesitos, o presidente do Tribunal lavrou e publicou a seguinte sentença:

A vista da decisão do júri, e de conformidade com o art. 383 do Reg. nº 120 de 31 de janeiro de 1842, condeno o réu Domiciano Francisco José, por haver morto a Joaquim Pereira Chaves, à pena última, grau máximo do art. 192 do Cód. Crim. e apelo: pagas as custas pelo réu. Aracati, 6 de dezembro de 1850. – Gonçalo da Silva Porto.

***

Interposto pelo condenado o recurso de protesto por novo Júri, conforme petição e termo que assinou no dia seguinte, e entrando em segundo julgamento, na sessão do Júri de 5 de abril de 1851, presidida pelo juiz de direito interino da comarca, o dr. Antonio José Henriques, juiz municipal de Russas, servindo de promotor público Antonio André da Costa Carvalho, de defensor o dr. Hippolyto Cassiano Pamplona, e como escrivão Luiz Candido Ferreira Chaves, ficou o conselho de sentença composto dos jurados- José Teixeira Castro, presidente, Bento José da Fonseca e Silva, secretário, Francisco da Costa Moreira, Luiz Gonzaga de Menezes Lyra, Manuel José Pereira Junior, José Francisco Rebouças, Manuel Herculano da Cunha, Alexandre Ferreira da Costa, Antonio Gurgel do Amaral, José Camello Pessoa, José Barbosa Gondim, e Francisco José da Costa Barros.

***

Preenchidas as formalidades do julgamento, e respondidos os quesitos propostos, o presidente do tribunal lavrou e publicou a seguinte sentença:

À vista da decisão do júri, com a qual me conformo, condeno o réu Domiciano Francisco José à pena de morte, grau máximo do art. 192 do Cód. Crim. Apelo da decisão do júri na conformidade do art. 449 § 2º do Regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1843. Pague a municipalidade as custas. Aracati, na Sala das Sessões do júri, 5 de abril de 1851. Joaquim José Henriques.

***

Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Pernambuco, sem ter havido apelação por parte do condenado, foi proferido o seguinte:

Acordam em Relação, que julgam improcedente a apelação de fl. a fls. por não se verificar algumas hipóteses do art. 301 do Cód. do Proc. Criminal, o réu apelante pague as custas. Recife, 9 de agosto de 1851. Azevedo, presidente. – Bastos. – Villares. – Leão. – Souza. – Rebelo. – Luna Freire. – Pereira Monteiro. – Valle. – Santiago.

***

Entretanto, não foi jurídica esta decisão.

O tribunal impressionado com a gravidade do crime e perversidade de suas circunstâncias concomitantes, não viu, ou não quis ver que o processo estava insanavelmente nulo desde sua base, e por isso claudicou, afirmando no Acordam não se ter verificado nenhuma das hipóteses do art. 301 do Cód. do Proc. Crim.!

Para que juridicamente seja valido o corpo de delito, e como peça substancial prove a existência do crime, e sirva de base ao processo criminal, é indispensável que figurem no mesmo, pelo menos, dois peritos com assistência de duas testemunhas, que assinem o respectivo auto, como expressamente o exigem o art. 137 do Cód. do Proc. Crim. e o art. 258 do Reg. nº 120 de 31 de janeiro de 1842, não podendo a sua falta ser suprida pela confissão do próprio réu, conforme disposição da Lei de 6 de dezembro de 1612 § 4º e Av. de 4 de setembro de 1755 §§ 2º e 3º - Paula Pessôa, Cód. do Proc. Crim., not. 980, pág. 180.

Ora, si no exame cadavérico, que serviu de base ao processo instaurado ex-ofício contra o infeliz Domiciano, apenas serviu um perito, sem assistência de testemunhas, pois que o respectivo auto somente foi assinado pelo subdelegado Antunes, e pelo perito dr. Theophilo, como ser vê da própria carta de sentença da Relação de Pernambuco, junta a fl. 119 do traslado do processo, é claro que, como peça nula, e insuprível pela confissão do réu, inquinava todo processo, e por isso, não podia ser confirmada a sentença, devendo antes o tribunal mandar proceder a novo sumário, conforme a imposição do Decr. nº 525 de 21 de julho de 1847.

Assim, porém, não sucedeu; e apesar da nulidade manifesta do seu processo, foi o infeliz Domiciano iniquamente enforcado sem que previamente o procurador da coroa interpusesse o recurso de revista para o supremo tribunal de justiça, como lhe impunha o art. 18 da Lei de 18 de setembro de 1828, visto o condenado não ter podido recorrer, a fim de, pelo menos, habilitar o poder moderador a comutar-lhe a pena de morte, com a qual não se presume que ninguém voluntariamente se conforme!

***

Remetido o recurso de graça com o relatório do juiz de direito interino, o dr. Joaquim José Henriques, ao poder moderador, por intermédio do presidente da província, e sendo denegado o mesmo recurso pelo Av. do ministério da justiça de 8 de julho de 1852, foi o infeliz Domiciano remetido da Capital da província para o Aracati, onde parece ter chegado pela manhã, e não à tarde de 27 de agosto, em vista da seguinte certidão:

Certifico que hoje, pelas duas horas da tarde, perante o Sr. Vigário interino Tito José de Castro Silva e Menezes, fui ao quartel, onde se achava preso o réu Domiciano Francisco José, e aí o intimei por origem do sr. juiz municipal Herculano de Araujo Salles, do que se deu por entendido e dou fé. Aracati, 27 de agosto de 1852. O Escrivão do Alcaide, Manuel Lourenço Pinheiro.

***

O dr. Paulino Nogueira disse que o suplício do infeliz Domiciano se verificou às quatro horas da tarde de 29 de agosto de 1852; mas assim não aconteceu, não só porque esse dia foi domingo, no qual não se podia fazer execução, conforme o preceito do art. 39 do Cód. Crim., como porque o escrivão respectivo afirma que a mesma se verificou às 8 horas da manhã do dia 30, como se vê da seguinte certidão:

Raymundo Candido Ferreira Chaves, Escrivão do júri e execuções criminais nesta cidade do Aracati, &.

Certifico que hoje pelas oito horas da manhã, no largo do Pelourinho, se executou a sentença de morte na forca na pessoa do infeliz Domiciano Francisco José, pelo assassinato cometido na pessoa de Joaquim Pereira Chaves, com assistência do dr. juiz municipal Herculano de Araujo Salles e minha, comandante da força de polícia e guarda nacional, o alferes Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, com as formalidades exigidas por lei: o que tudo porto por fé. Aracati, 30 de agosto de 1852. O Escrivão das execuções, Raymundo Candido Ferreira Chaves.

***

Na manhã do dia 30 de agosto, dobrando a finados os sinos dos quatro templos, partiu da cadeia o préstito, pela rua do Comércio, precedido pelo porteiro Manuel Lourenço Pinheiro, conhecido por Manuel Irra, que apregoava a sentença, acompanhado do juiz municipal, dr. Herculano de Aguiar Salles, que ia a cavalo, do escrivão Raymundo Candido Ferreira Chaves, da força pública, comandada pelo alferes Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, e do carrasco vindo da capital da província.

O infeliz Domiciano, algemado, sem chapéu, vestido de camisa e calças brancas, com o baraço ao pescoço, em cuja ponta o carrasco segurava, ia olhando para a imagem de Cristo, que o vigário interino, padre Tito José de Castro Silva e Menezes, conduzia na mão.

No largo do Pelourinho ou Cruz das Almas, onde estava armada a forca, e reunida grande multidão de pessoas, inclusive os pais do condenado, o infeliz Domiciano subiu ao patíbulo, donde pediu ao povo que, em sua intenção, rezasse uma “Ave-Maria” ao Senhor do Bonfim; e atirando-se daí, sucedeu quebrar-se a corda e cair o infeliz sem sentidos, havendo nessa ocasião aparecido em seu favor a bandeira da misericórdia e grande clamor do povo que em pranto pedia ao juiz o perdão do condenado, ao mesmo tempo que, insinuados, dois filhos menores de Coringa reclamava o suplício do assassino de seu pai.

Não podendo ser atendida a súplica do povo, foi o infeliz reconduzido à forca, onde, pendurado com a cabeça voltada para a Capela do Bom Jesus do Bonfim, sucumbiu às 8 horas da manhã, aos lamentos e lágrimas do povo e de seus pais, que, aflitos, assistiram ao seu tremendo suplício!

***

Não é exata a informação de haver o padre Antonio Francisco Sampaio acompanhado o infeliz, e nem que este fosse vestido de alva, como afirmou o dr. Paulino Nogueira.

O cadáver, em cuja cabeça o comandante da força, para assegurar o óbito, descarregara três bordoadas com granadeira, não foi levado para a capela do Rosário, onde teve sepultura, do modo por que são conduzidos animais suínos para o açougue, como informaram ao ilustre historiador; pois o cidadão José Pereira Barbosa, morador dos arrabaldes da Passagem de Pedras, homem verdadeiro e maior de 85 anos, e tão robusto que ainda monta a cavalo, e vai ao Aracati tratar de seus negócios, assim como a viúva D. Leonilia Monteiro Pinto, atualmente residente em Fortaleza, afirmaram que viram o cadáver ser conduzido em esquife para a referida capela, acrescentando D. Leonilia haver o padre Tito mandado envolvê-lo em mortalha branca, para ser assim sepultado.

***

Concluindo sua exposição, o dr. Paulino Nogueira, ainda baseado em informações errôneas, estava na suposição de ser o Domiciano um inocente; mas em vista do que fica referido, é fácil reconhecer o seu engano, como ele próprio o confessou em carta que me dirigiu, e cuja publicação julgo conveniente, para mostrar a sua generosidade no conceito, que por um requinte de bondade externou a respeito do caráter daquele infeliz.

***

Fortaleza, 8 de janeiro de 1908.

Ilm.o Am.o Sr. Bendito A. dos Santos.

Muito obrigado pelo presente, que me mandou pelo nosso amigo Affonso Bezerra, que foi pronto em m’o entregar.

Eu já me tinha ocupado da execução do Domiciano na Revista do Instituto do Ceará; mas agora vejo pelos documentos recebidos que há muito que emendar e retificar.

A mulher do Coringa, eu digo chamar-se “Eduvirges Maria de Jesus”, quando seu nome é Luiza Felicia do Nascimento!

Mas, sobretudo o que mais me impressionou foi o caráter distinto do infeliz, digno de melhor sorte!

A notícia que eu tinha era que Luiza fora a única assassina do marido; entretanto Domiciano pretende salvá-la da morte e da desonra a custa de sua vida! Se não foi o mártir, foi um verdadeiro homem de bem! Nem a adúltera era digna de tanto sacrifício.

Mas de um fato extraordinário, que o dr. Herculano me referiu, os papeis não tratam!

Refiro-me ao quebramento da corda de Domiciano quando pela primeira vez atirou-se da forca, acudindo na ocasião a bandeira da misericórdia em seu favor.

Não conhece esta circunstância que menciono no meu trabalho?

É verdadeira.

Outrossim. Não sabe que fim levou Luiza? Para mim já não há mais dúvida de que foi ela o anjo mau de toda essa tragédia; por isso o demônio protegeu-a.

Adeus, si tiver mais algum presente igual é mandar-me, que me cativará muito.

Seu am.o cr.o obr.o

Paulino Nogueira

***

Resta agora referir que Luiza Felicia do Nascimento, parda, de trinta e cinco anos, natural da povoação do Jequi, filha de José Antonio de Barros e de Francisca Jacinta de Jesus, viúva do Coringa, sendo submetida a julgamento na sessão do júri de 7 de dezembro de 1850, foi condenada à morte; mas, tendo protestado por novo júri, e sido adiado o seu julgamento, conforme o art. 43 do Cód. Crim., em consequência do seu estado de gravidez, por isso só veio a ser julgada em sessão de 23 de março de 1852, sendo condenada à prisão perpétua, nas cadeias da Capital da província como incursa no grau médio do art. 192 do Cód. Crim., por ter o júri reconhecido em seu favor a atenuante do art. 18 § 7º do mesmo Cód., isto é, ter a delinquente cometido o crime aterrada de ameaças; sentença que foi confirmada pela Relação de Pernambuco em Acordam de 26 de julho de 1853.

Remetida para a cadeia da Capital do Ceará, onde esteve recolhida alguns anos, posteriormente foi transferida para “Fernando de Noronha”, como consta da seguinte certidão.

Certifico que a ré Luiza Felicia do Nascimento se acha no presídio da Ilha de Fernando de Noronha, como do mapa que veio a este juízo, e que foi devolvido em novembro de 1869. O escrivão do júri Luiz Candido Ferreira Chaves.

***

Consta que muitos anos depois alguém escreveu de Fernando ao cidadão José Monteiro Pinto, comunicando o falecimento da condenada.

1910.

Benedicto Santos


SANTOS, Benedicto. A pena de morte em Aracaty. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza. 1910. p.62-78.

O texto acima foi transcrito de original publicado na Revista do Instituto do Ceará, tomo de 1910. O texto original foi adequado ao novo acordo ortográfico com o objetivo de facilitar sua leitura. Contudo, os nomes das pessoas citadas foram preservados em sua grafia original.

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