PELOURINHO- REDUTO DOS CONSERVADORES
Os conservadores se recolheram ao seu reduto no Pelourinho[5] e deixaram que seus adversários fizessem a comemoração política sem provocação. Pois desde há muito que os ânimos vinham sendo alterados a cada eleição que se sucedia seja ela para que fosse; de Juiz de paz[6] ou de deputado geral.
Quando se imaginava que os espíritos estivessem mais arrefecidos, aconteceu uma altercação entre os partidários do partido Conservador e Liberal. Isto ocorreu durante a realização de um Te-Déum[7] pela maioridade de S. Majestade o Imperador D. Pedro II, realizado em julho de 1840, no pátio da Igreja Matriz. Havia sido combinado antes de se iniciar a cerimônia religiosa, que as saudações seriam única e exclusivamente para o Imperador. No entanto, ao final do ato quando os grupos iniciavam a se retirar do pátio da Matriz, foram dadas vivas ao Presidente Martiniano de Alencar e ao Major Facundo. Esse desrespeito ao combinado causou um enorme desconforto entre os Conservadores que se sentiram insultados. Isto gerou uma grande confusão que se alastrou por toda a Vila noite adentro em vários os lugares.
As divergências não cessaram com essa escaramuça. Ao contrário, tornaram-se mais assiduamente a cada dia que passava.
DESPACHO DAS ARMAS
No mês de setembro, ainda em 1840, o Inspetor da Alfândega de Aracati[8] Jose Gervásio de Amorim Garcia, enviava um comunicado ao vice-presidente da província, Major João Facundo de Castro Menezes, que havia chegado de Pernambuco no Patacho Laurentina 24 clavinotes[9] para Silvestre Ferreira dos Santos Caminha – chefe do partido Conservador em Aracati – e que ele estava resolvido a não consentir no despacho das armas sem ordem positiva do próprio Major Facundo, “fazendo isso pelo zelo da tranquilidade pública".
Havia na compra dessas armas, assim se supunha, alguma intenção ou plano em andamento por parte dos conservadores, em causar embaraço aqui em Aracati ao governo do Senador Alencar que vinha sofrendo rebeliões em outros pontos da Província.
Essas rebeliões segundo relatório do Ministro da Justiça do Império[10], provocou: ...“a irritação dos partidos políticos, exacerbada por vários atos do vice-presidente João Facundo de Castro Menezes, subiu ultimamente a um ponto a que chegou, e rompeu em deploráveis excessos. As rebeliões começaram em novembro em Russas, chegando ao Aracati em Dezembro do mesmo ano de 1840".
Não conformados com a nova situação vigente sob o comando do partido Liberal, os opositores do Presidente da Província Senador Alencar, aproveitaram-se de uma rebelião havida contra o governo na Vila de Sobral, e incitaram uma desordem generalizada pelo vale do Jaguaribe começando em Russas, com a finalidade de desestruturar o governo da Província e tumultuar as eleições que se anunciava para o final do ano.
JOAQUIM EMÍLIO AIRES, O FAÇANHOSO
Para essa finalidade e com o objetivo muito bem esclarecido, aproveitaram-se aqui em Aracati os Conservadores, do “façanhoso” personagem da nossa história, Joaquim Emilio Aires[11], ex-redator do jornal Clarim da Liberdade[12], mandando-o a Vila de Russas para entender-se com os Caminhas[13] que exerciam forte liderança naquele lugar; “a fim de que, juntos reunissem um grande grupo de revoltosos se apoderam de Russas e depois marchassem sobre Aracati para também se apoderar da Vila".
No dia 23 de novembro de 1840, foi deflagrado o ataque a Russas com absoluto sucesso dos revoltosos. Na ocasião prenderam o importante “Cel. João de Castro e Silva Menezes,[14] dominaram o destacamento policial local e infundiram terror aos adversários políticos”.
O mesmo destino estava previsto para a vila do Aracati, se as autoridades locais não tivessem com coragem e competência, abortado o sinistro plano engendrado nas entranhas dos chefes conservadores de nossa vila. Os agentes inimigos do governo da Província, inclusive o próprio juiz de Direito de Aracati na época, Antônio José Machado, foi acusado de acoitar dentro de sua própria casa homens armados que estavam envolvidos na rebelião que deveria acontecer ao mesmo tempo no mesmo dia que ocorreria na vila de Russas. Em vista disso foram presos os rebeldes que aqui se preparavam para o ataque, sendo que o juiz de Direito se vendo derrotado na sua ação fugiu do Aracati.
Diante do fracassado ataque a vila do Aracati, os revoltosos não desistiram. Começaram então a arregimentar gente com a intenção de atacar com um grande número de pessoas a nossa, vila que tinha uma importância política de projeção no cenário da Província além de ser um forte reduto do partido Liberal.
ARACATI SOB AMEAÇA
Apesar de estar preparada para o possível ataque, o bom senso das autoridades fez com que fosse pedido reforço policial a Capital para defender a vila, pois diante da forte ameaça era necessário se prevenir para evitar que a vila fosse tomada pelos desordeiros que queriam desafiar o governo da Província na pessoa do seu presidente o senador José Martiniano de Alencar.
Foram então mandados para Aracati sob o comando do Major Thomas Lourenço[15] e do Major Bandeira, mais de 200 soldados que vieram de Aquiraz, de Fortaleza, sem contar que aqui vieram também a guarda nacional de Cascavel e Messejana que ficaram hospedados num sobrado da Rua Santo Antônio.
Como haviam ameaçado, realmente no dia 23 de dezembro de 1840, um mês depois da primeira fracassada investida à vila do Aracati, os revoltosos tendo a frente Joaquim Emilio Aires e João Batista Ferreira dos Santos[16] Caminha, investiram sobre Aracati.
O astuto Emilio Aires na intenção de amedrontar as autoridades de Aracati enviou uma mensagem por um portador, dizendo que: “já se encontrava em Passagem de Pedras[17] com sua gente, e que as autoridades e o povo da vila se rendessem sem luta, pois seria inútil resistir".
O juiz de Direito interino, Manoel Dias Martins, que substituía o juiz que havia fugido por estar comprometido com os revoltosos, acreditando que fosse realmente verdade as palavras e as ameaças do fantasioso Emilio Aires, mandou chamar o Major Thomas Lourenço, comandante da tropa, e na tarde do dia 23 de dezembro, ordenou que o militar fosse ao encontro do inimigo, que se realmente estivesse em Passagem de Pedras como dizia, estava a bem dizer na porta da vila.
Obedecendo as ordens do juiz, o militar juntou parte da tropa e seguiu ao encontro do adversário para um combate em campo aberto. Quando já se colocava em marcha, o Major Thomas Lourenço recebeu mais um recado aterrorizador do Emilio Aires dizendo: “que estava vindo ao Aracati à frente de uma tropa de 1800 homens pais de família para a vila do Aracati com o fim de tomar vingança de certos indivíduos e que esperava que não pusesse o menor estorvo a sua marcha e fim".
Estava claro que Emilio Aires blefava no sentido de causar terror ao comandante e a tropa por ele conduzida. Tanto é que sem se incomodar com essas mensagens de terror, o Major Thomas Lourenço continuou sua marcha em busca de Passagem de Pedras ao encontro da tropa do Emilio Aires e do João Batista Caminha, que tinha fama de muito valente e destemido, sendo conhecido por suas façanhas em vários episódios ocorridos da ribeira do Jaguaribe.
No dizer do Dr. Pedro Theberge[18] se referindo a esse episódio no seu livro “Esboço Histórico da Província do Ceará”, “o Major executou sua marcha com tão pouca cautela que a duas léguas da Vila, caiu já pela boca da noite numa cilada, que lhe teria sido mui funesta se o inimigo entendesse mais de estratégia".
Na verdade, o Major não devia conhecer bem o terreno onde estava pisando. Diferentemente do Emilio Aires que aqui vivia no Aracati desde 1831 quando fundou o jornal “Clarim da Liberdade” à custa do rico comerciante português Domingos José Pereira Pacheco.
Pois bem vamos ainda mais uma vez ao parecer do Dr. Pedro Theberge: “sim, ele não pressentiu que o inimigo, avisado da sua marcha, se havia escondido no mato a espera de que passasse com sua gente; o que feito, quando se achou além do inimigo, já cortado da vila recebeu uma descarga geral, que lhe matou dois homens, e feriu outros muitos”.
Atordoado pela cilada o Major Thomas Lourenço mesmo assim conseguiu orientar sua tropa e enfrentar o adversário em precária situação devido a escuridão da noite e a surpresa do ataque de que fora vítima, voltando ao Aracati com seus homens enquanto os seus inimigos se espalhavam pelo mato e várzeas do Albuquerque...
CONFRONTO NA VÁRZEA DA MATRIZ
Voltariam a se enfrentar novamente por volta das 7 horas da manhã dessa feita em plena várzea da Matriz ao nascente da vila onde existia um vasto carnaubal dificultando o combate. A luta que se iniciou pelo nascente da vila não muito distante da igreja Matriz se estenderia e se prolongaria bastante renhida para dentro da vila nas ruas e nas travessas, num confronto onde os estampidos e o cheiro da pólvora dos clavinotes e dos bacamartes, se faziam ouvir e sentir por toda a vila, assim como igualmente o clamor dos feridos estendidos pelas ruas da vila ensanguentada.
A estratégia do Emilio Aires em atacar a vila pela várzea demonstrava muito bem o conhecimento que ele tinha da situação e do terreno onde estava travando a refrega. Era essa a maneira e o meio mais fácil de cercar a vila e chegar ao centro onde estava a Casa da Câmara e Cadeia e o paiol de pólvora, com o objetivo de se apoderar das armas existentes naquele local assim como a munição necessária para a batalha...
Por volta das 9 para as 10 horas da manhã, uma parte da tropa do Emilio Aires penetrou na rua Santo Antônio [19] depois de atravessar a rua do Ramos[20], vindo da várzea da Matriz, entrando na Travessa da Viração[21] e seguindo diretamente para a rua das Flores onde estava a Casa de Câmara e Cadeia, um dos objetivos a ser atingido no seu ataque. Outra parte da tropa seguiu pela rua Direita[22] entrando na rua das Flores pela Travessa da cacimba da rua[23], atacando a Cadeia Pública pela retaguarda na rua do Silvestre[24].
CONFRONTO NAS RUAS DE ARACATI
O cenário central do combate, seu palco principal, se desenvolveu em toda a extensão a rua das Flores envolvendo a Travessa das Flores[25] e do Encontro[26], onde o enfrentamento da tropa oficial comandada pelo Major Thomas Lourenço contra a malta de rebeldes, foi uma batalha renhida e bravamente disputada.
No princípio da peleja a tropa do Emilio Aires conseguiu um sucesso importante, pois se apoderou do prédio da Cadeia, “abriu todas as celas soltou os presos e se apossou do paiol da pólvora e dele tirou as munições de guerra que pode”. Acossado pela tropa oficial ainda nas mediações da cadeia, a tropa rebelde teve que sair para a luta em campo aberto pelas travessas e pelas ruas onde se desenrolava o combate. Essa lide teve a duração de mais de 8 horas de refrega. Somente por volta das 2 horas da tarde a tropa do Emilio Aires tendo João Batista Caminha como companheiro, bateram em retirada rumo a Russas, deixando um rastro de mortos e feridos espalhados em toda rua Grande até o Pelourinho[27] onde ocorreu a última e derradeira troca de tiros dessa horrenda contenda...
Segundo a crônica da época, os rebeldes invasores, ao cruzarem em retirada o final da rua do Pelourinho no extremo sul da vila, não foram mais perseguidos. A gente da vila começou então a fazer a triste estatística dos mortos e cuidar dos feridos que foram muitos. Existem divergências quanto aos mortos em combate. Para alguns historiadores que se encarregaram de narrar esses acontecimentos, houve apenas 6 mortos; sendo 4 soldados da tropa do governo e 2 dos agressores. Parece ser um número pequeno diante de um confronto que durou por mais de 8 horas, no entanto todos que descreveram essa batalha afirmaram que foi impressionante o número de feridos ficados no campo da luta...
Aceste Caminha descendente do chefe rebelde João Batista Caminha, ao analisar os fatos desse acontecimento e o destino do seu ancestral, para uma pesquisa que realizava a respeito de sua família assim se expressou:
“Os parcos dados mencionados permitem, entretanto, visualizar com a imaginação referido combate. Certamente ciente da concentração de tropas que estava sendo efetuada no Aracati e que a cada dia tornara mais insustentável sua posição, o chefe rebelde optou por uma cartada desesperada, ou seja, ataque imediato, sem dúvida contando com o fator surpresa, sua única possibilidade de vitória, mas que no final não se concretizou. O que os rebeldes encontraram foi a resistência organizada de tropas de linha veteranas experientes em encontros bélicos, bem armados e municiados, prevenidas do ataque, certamente entrincheiradas no casario à entrada da vila, e conduzidas por oficiais provados nas lutas anteriores. Tropas irregulares que eram sem disciplina militar e provavelmente sem experiência de combate. Os rebeldes, defrontando-se com uma resistência firme e eficiente, desnorteados debandaram derrotados.”
E concluía: “Há detalhes intrigantes. Como e porque, atendendo a que fatores ideológicos ou circunstâncias ocasionais, João Batista Caminha tornou-se um chefe rebelde, sendo ele membro de uma família de comerciantes, conservadores por tradição e por profissão e que sempre tinham se abstido de participação em movimentos sediciosos? Que apoio teria recebido João, inclusive para financiamento da constituição, armamento e alimentação da tropa? E por que seu nome e sua vida foram sepultados pela família em completo silêncio? Seria por ser considerado a ovelha negra que envergonhava a família?”
A vila do Aracati ainda recolhia seus feridos e chorava seus mortos, quando no dia 28 de dezembro, menos de uma semana depois da conflagração que tantas famílias enlutou; o Presidente da Província José Martiniano de Alencar, mandou por intermédio de um Juiz de Direito, “oferecer anistia geral aos rebeldes que depusessem as armas, prometendo um esquecimento completo do passado”.
Foram então convocados dois emissários, um dos quais o rico comerciante de Aracati, Domingos Alves Ribeiro, para levarem a proposta aos rebeldes, que aceitaram a magnanimidade do governo conforme foi comunicado pelos dois emissários ao Presidente da Província em 6 de janeiro de 1841...
O sangue derramado dos que aqui tombaram serviu de justificativa para que mais sangue não fosse derramado entre irmãos cearenses por discordância política... mera ilusão... mostraria a história... Um ano depois no dia 8 de dezembro de 1841, depois de participar das comemorações religiosas do dia dedicado a N. Senhora da Conceição, estava o Major João Facundo de Castro Menezes em sua residência na rua da Palma nº 72, hoje rua Major Facundo, cidade de Fortaleza, quando foi alvejado mortalmente por três tiros de bacamarte na cabeça, a mando dos seus adversários políticos do partido Conservador.
[1] Presidente da Província do Ceará: 1º Período: 1834-1837 2º Período: 1840-1841
[2] 1º Vice-Presidente da Província do Ceará
[3] Atualmente Bairro de Fátima
[4] Primeiro Nome da atual Av. Cel. Alexanzito, na parte norte da cidade
[5] Antigo bairro na entrada sul da cidade, por ter sido ali instalado o 1º Pelourinho (monumento símbolo do poder público).
[6] Eleito pela população para exercer a função de juiz em casos menores, conciliar os litigantes.
[7] Ato litúrgico da Igreja Católica
[8] Alfândega do Aracati, instalada em 1835 extinta em 1851. Demolido o prédio em 1911 para dar lugar a atual Praça Dr. Leite.
[9] Carabina antiga, tipo de espingarda.
[10] Ministro da Justiça do Império do Brasil Paulino José Soares de Souza no período de 1840-1843
[11] Alagoano, misto de político, medico e jornalista, foi deputado provincial, teve atuação na política do Aracati, fundador e redator do Jornal Clarim da Liberdade.
[12] 1º jornal fundado no interior do Ceará em 10 de Dezembro de 1831 na Vila do Aracati.
[13] Família aracatiense ligada ao partido Conservador
[14] Membro da importante família Castro e Silva, ligado ao partido Liberal, parente do Major João Facundo de Castro e Silva.
[15] Thomas Lourenço da Silva Castro
[16] Um dos chefes da família Caminha conhecido pela sua valentia
[17] Atual cidade de Itaiçaba
[18] Medico e Historiador nascido na França, construiu o Teatro da Ribeira no Icó.
[19] Atual Cel. Alexanzito no início.
[20] Atual Rua Cel. Pompeu
[21] Travessa Cônego João Paulo
[22] Atual Cel. Alexandrino
[23] Travessa Pe. Sá Leitão
[24] Atual Rua Santos Dumont
[25] Travessa Barão de Messejana
[26] Travessa João Adolfo Gurgel do Amaral
[27] Final da Av. Cel. Alexanzito perto da Cruz das Almas.