CRIME E CASTIGO
A notícia vem de Belém do Pará: um garoto de 11 anos de idade vingou a morte do pai, na mesma hora em que este morria assassinado, aos 43 anos, com 17 facadas. O garoto, que assistiu ao crime, vendo as vísceras de seu pai expostas, misturadas ao barro da rua, correu para sua casa.
Mas voltou com uma velha espingarda de passarinhar, no momento em que o criminoso "deixava o local do crime, tranquilamente, com a faca nas mãos". O menino apertou o gatilho, a carga de chumbo apanhou o assassino de seu pai pelas costas.
O duplo homicídio ocorreu, diz a notícia, na Vila do Breu, município de Tome-Açu. O garoto foi preso e, após a lavratura do auto de constatação da infração, ficou sob a custódia do comissário de polícia local. E daí, pergunto eu?
Sei que há uma legislação especial para menores, mas quem condenaria Waldir da Silva que, num ato de desespero, vingou a morte do pai, tomado de violenta emoção? Ainda mais: quem apagará da memória deste menino a cena brutal, que as palavras são impotentes para registrar?
Recordo-me que, anos atrás, também falei de um caso semelhante. Tratava-se de um crime praticado por um vendedor de bilhetes, menor de 15 anos, que, no centro da cidade de Petrópolis, abateu a tiros de revólver o trucidador do pai.
Até hoje eu não consegui esquecer o punhal de Raimundo Nonato na garganta de meu pai, enquanto era ele seviciado por dois ou três bandidos. Meu pai se negava a engulir o artigo de fundo do seu jornal, que denunciava um contrabando de cera de carnaúba.
Este menor assistira, há quatro anos passados, à mutilação do pai, pelo que o cadáver foi identificado com muita dificuldade. O filho ficou com aquela imagem sangrenta nas retinas, que ia ficando cada vez mais nítida e traumatizante com o passar do tempo.
Durante quatro anos ele acompanhou o assassino do pai. Via-o, no centro da cidade, alegre, conversando, fumando charuto. Um anel grande do assassino tinha um poder enorme sobre o garoto. Chegava a sonhar com o homem trucidador, de anel grande, deformando a cara do pai com um machado, para dificultar a identificação.
Há muitos e muitos anos atrás, eu também, na minha impotência de menino de 8 anos de idade, assisti, aos prantos, à invasão de nossa casa. Foi na cidade de Aracati. Os vândalos, chefiados por um conhecido matador profissional, na calma do domingo provinciano, entraram casa adentro e tudo quebraram. Até as xícaras de tomar o café da manhã!
Até hoje eu não consegui esquecer o punhal de Raimundo Nonato na garganta de meu pai, enquanto era ele seviciado por dois ou três bandidos. Meu pai se negava a engulir o artigo de fundo do seu jornal, que denunciava um contrabando de cera de carnaúba.
Minha mãe, visivelmente grávida, gritava, pedia clemência, segurava o pulso do homem que ameaçava sangrar meu pai como um porco, um animal qualquer. Eu e mais dois irmãos chorávamos de terror.
Depois que deixaram meu pai desacordado, passaram para o prédio anexo, que era a redação do jornal, e tudo danificaram. Todas as caixas de tipo e todas as máquinas impressoras. Todas as resmas de papel do depósito.
Mandante e mandados, como quase sempre, ficaram impunes. Raimundo Nonato ficou ainda mais temido. Nunca negou ter comandado o vandalismo. E eu nunca o esqueci e nunca o perdoei. Quanta vez não fiz planos para matá-lo!
Um dia, não muito longe do atentado, ele foi morto a pauladas, como um cão danado, por um canoeiro. Eu fui ver seu corpo enterrado na lama. Na lama do rio da minha pequena cidade. E confesso que tive uma alegria imensa e que desde aquele dia eu nunca mais sonhei com Raimundo Nonato.
(Holdemar Menezes)
A COLEIRA DE PEGGY
Nessas noites, antes nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da alva, eu saio e parto, numa marcha impetuosa, ao longo do cais. (Camus — A Queda.)
É este o emprego, disse o Sr. Carlos.
O encontro foi no Náutico, no aperitivo do fim da tarde, as cadeiras espalhadas sobre o aterro gramado. Desviei o olhar das lentes circulares do Sr. Carlos, atrás das quais se notava um par de olhos miúdos, cor de aço polido. Não é uma tarefa tão difícil como o senhor pensa, voltou a falar. Espero uma resposta até amanhã, às oito horas, no escritório. Entende?
Em seguida, o Sr. Carlos deu a entrevista por encerrada e perguntou-me: não deseja tomar uma cerveja gelada? Ao chegarmos ao grupo, o Sr. Carlos apresentou-me aos amigos: possivelmente este rapaz será o novo preceptor de Peggy. É um estudante de filosofia, acrescentou o Sr. Carlos. Veio atraído pela oferta, já que não tem muitas posses e, por outro lado, está em férias.
A brisa mansa batia na superfície da baía cinzenta. À esquerda, a silhueta dos navios atracados. Alguns veleiros retornavam ao clube, com as velas em ângulo de 45 graus. Uma mancha de sol por trás das serras de Curitiba. Se eu aceitasse o emprego anunciado no jornal, teria que me entrevistar com a Sra. Helen e, posteriormente, entrar em contacto com Peggy.
O homem de cachimbo, depois de alguns instantes, talvez por não desejar minha presença, falou: o Jean Genet vai levantar ferros, e perguntou: não queres ir com eles? A tripulação está desfalcada. Qualquer coisa que fizeres será de utilidade, mesmo lavar louça. Temi que meu comportamento a bordo pudesse comprometer meu futuro trabalho, eu que não sou homem de mar, e agradeci.
O homem de óculos, possivelmente continuando uma explanação interrompida, disse ao Sr. Carlos que já havia cabografado ao Guintter, em Genebra. Procure-o no escritório, e que o material deve ser despachado para o Willy, em Hamburgo. Dessa vez, tenho certeza, o negócio vai sair direito.
Sim, mas como entrar no País com tantos relógios? -perguntou-lhe o Sr. Carlos. Então o homem de óculos, demonstrando irritação, afirmou que os relógios seriam escondidos nos pneus e estofamento do carro. O Mercedes, Carlos, desembarcará aqui, sob as nossas vistas.
E não será liberado pela Alfândega, completou o homem de luto, por irregularidade nos documentos de importação.
Ficará retido no armazém da Guardamoria. Empregaremos todos os meios para liberá-lo, o que, sabemos, será impossível. Se não houver modos para retirar os relógios antes do fim da ação contra o Ministério, obteremos o veículo quando for a leilão.
Enquanto o Sr. Carlos traçava a rota de sua viagem, permaneci desatento, olhando o poente vermelho sobre as águas domesticadas, o vento soprando com suavidade, os barcos atracando no trapiche de madeira.
Ainda temos muito tempo para rever os detalhes, disse o Sr. Carlos. O rapaz aqui deve estar cansado e, certamente, deseja ir ao hotel. Rasguei o recorte do jornal e fiz dele uma bolinha amarelada.
Toquei a campainha e quem me atendeu foi a Sra. Helen. Carlos foi providenciar os passaportes, disse ela. É o novo preceptor de Peggy? Ótimo, pode sentar-se. Carlos só volta à noitinha, que os documentos só podem ser liberados em Curitiba ou Florianópolis. Mas Carlos tem uns amigos influentes em Curitiba, gente do Governo, e lá as coisas andam mais rápidas. O senhor entende, não é?
A Sra. Helen havia saído do banho e mantinha uma toalha sob os cabelos. Recendia a sais aromáticos, desses obtidos no contrabando, e notava-se, pelo rubor da pele, que permanecera muito tempo submersa em água aquecida. Desculpe-me recebê-lo assim, mas é que acabei de sair do banheiro. Carlos deixou-me instruções para atendê-lo prontamente. É que nossa viagem é muito importante, acrescentou.
Depois eu vou lhe apresentar ao Peggy. O essencial, entretanto, já que o senhor aceitou o cargo, é saber lidar com a coleira. Foi desenhada por traumatologista de Memphis, quando de nossa última viagem. No início, os outros preceptores usavam uma coleira comum, mas apareceram muitos problemas desagradáveis. Carlos teve vários aborrecimentos, especialmente em duas oportunidades: a primeira, quando Peggy fugiu e quase foi apanhado por uma jamanta; a segunda, quando caiu vitimado por asfixia, e o preceptor não usou o ressuscitador portátil, que é obrigado a conduzir.
Esta coleira aqui, continuou, ao mesmo tempo que abria a porta do armário, é quase perfeita. Pelo menos, até o instante, não tivemos nenhum incidente sério. O importante, avisou-nos demoradamente o doutor de Memphis, é saber controlar a constrição, para o que se usa este pequeno controle eletrônico.
Os orifícios que o senhor verá na coleira — cinco carreiras de seis furos paralelos — o senhor encontrará também no painel de controle. Funciona assim, veja: se desejar aumentar o diâmetro do anel, baixe a seta vermelha; se for preciso diminuí-lo, acione a seta verde para cima. Com o tempo, o senhor estará perfeitamente seguro da simplicidade do funcionamento do conjunto. Além do mais, veja que belo acabamento, dando a impressão de um verdadeiro aparelho ortopédico.
Sem me pedir consentimento, avançou resoluta para mim e me passou a coleira no pescoço. Sinta como funciona: se baixo a seta vermelha, o senhor sente pressão contra a garganta; se suspendo a seta verde, o senhor pode movimentar o pescoço à vontade. Novamente: à proporção que vou descendo a seta vermelha, o senhor vai sentindo maior constrição. Para aliviar a compressão, observe, é só manejar a seta verde em sentido contrário, assim, assim. Tome, exercite-se um pouco, o senhor mesmo.
O senhor já compreendeu os nossos receios. Não poderíamos viajar se Peggy não ficasse entregue a uma pessoa inteligente e instruída. Daí a razão do nosso anúncio e o salário que Carlos está disposto a pagar mensalmente, só porque a viagem é muito importante para nós.
O Sr. Carlos e a Sra. Helen viajaram na semana seguinte.
Meu primeiro encontro com Peggy foi terrível, e o choque em mim provocado quase me fez desistir do emprego. O Sr. Carlos e a Sra. Helen, percebia-se facilmente, haviam tentado dar a Peggy uma aparência melhor, menos chocante.
Peggy tinha uma fronte pontuda, os cabelos eriçados, grandes caninos, que faziam os lábios sempre ulcerados, e os olhos amarelados movimentavam-se em círculos, seguidamente. Emitia ruídos, assim como um animal acuado, pronto a atacar.
É nosso filho, disse o Sr. Carlos. Tem pouco de ser humano, muito pouco mesmo. Nenhum sentimento de bondade ou de amor. Há necessidade de mantê-lo, para o bem de todos, enjaulado. Fora da jaula tem que ser manietado, pois apresenta facilmente fortes acessos de violência.
Descobri, com o passar dos dias, que Peggy possuía algumas qualidades humanas. Parecia demonstrar alguma afeição por mim e foi perdendo a agressividade, permitindo, sem grande resistência, o banho diário e a troca de roupa. Descobri que não era totalmente surdo. Por um acaso: que podia perceber sons musicais. Repeti a experiência vezes seguidas, com método e paciência, até que me certifiquei de seu agrado por Brahms. Detestava as sinfonias de Beethoven e Jazz tradicional.
Certo dia eu disse à governanta: vou levar Peggy para um passeio na praia. Ele está necessitando de sol, além do mais o mar é um bom sedativo. Mas o Sr. Carlos nunca permitiu que ele saísse de casa, retrucou ela. Diz a todos que o filho é paralítico. Não suportaria que a cidade tomasse conhecimento de que a Sra. Helen pariu um monstro.
Peggy, no princípio, inquietou-se com a imensidão da baía, e eu tive que manejar a seta vermelha com muita eficiência. Só aquietou-se quando eu coloquei Brahms na eletrola portátil.
Uma semana depois, apesar dos protestos da governanta, Peggy demonstrava, com pulos e grunhidos, desejo de ir à praia. Era grotesco vê-lo rolar na areia, guinchar de satisfação, correr desordenadamente.
Aprendeu a nadar, após um longo aprendizado. Dava-me a impressão de uma foca, a movimentar os braços e pernas, a testa pontuda como se fosse um focinho. Uma semana depois, Peggy sabia boiar, e permanecia flutuando, minutos seguidos, soltando água pela boca em esguichos fortes, somente submergindo quando um navio apitava mais alto.
Teve outros aproveitamentos importantes. Por exemplo: já não fazia resistência para evacuar no vaso sanitário instalado no piso de sua jaula. Antes, trepava pelas barras de ferro, e, lá de cima, deixava a matéria fecal cair sobre a superfície vitrificada. E comprazia-se, muitas vezes, em sujar, com as mãos, os móveis do quarto transformado em prisão.
Só não aprendeu foi a comer como ser humano, muito embora eu tenha empregado muitas horas no ensino. Alimentava-se de comida pastosa, depositada em um prato fundo, e o fazia de quatro, aos grandes sorvos. Mas isso era o de menos, pois, nas horas de refeição, eu cerrava as cortinas postas pelo lado de fora das grades.
Eu não havia ainda encontrado Peggy quando a perícia chegou.
Meu quarto ficava em frente à jaula de Peggy, e eu dormia com minha porta aberta, pois me era fácil controlar seus movimentos. Em virtude disso, ao acordar, ainda na cama, certifiquei-me de que Peggy fugira. Procurei-o por todos os recantos da casa, sem nenhum resultado. Não só ele sumira, como também o pequeno aparelho de controle remoto.
Quando entrei no quarto da governanta, o doutor ia saindo, acompanhado por um investigador. O policial perguntou-me, grosseiramente: que instrumento o senhor toca nessa casa de loucos? Sou o preceptor de Peggy. O investigador criminal não fez por compreender o que eu dissera e continuou: obra de um sádico.
Conduzi-os ao gabinete do Sr. Carlos, na ala sul da residência. O policial determinou com arrogância: o senhor não pode deixar a cidade antes de terminado o inquérito. Disse-lhe que estava preso a um contrato de serviço, e que só poderia viajar após o regresso do Sr. Carlos e da Sra. Helen.
O doutor, depois de muito meditar, falou para o investigador: tenho visto muitos casos de mulheres violentadas, mas é o primeiro de estupro em que o criminoso usa uma coleira para estrangular a vítima.
(Holdemar Menezes)
MENEZES, Holdemar. A Coleira de Peggy. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1973. 80 p. (Santa Catarina).