ASAS DE PARDAIS E CANTOS DE CANARINHOS
Pássaros cantando sobre as telhas coloniais anunciam que é hora de acordar. Pardal quando resolve amanhecer desperta a todos com o seu canto. De salto em salto, ora planando, ora voando eles passavam do sapotizeiro à goiabeira e daí para a graviola para sentar seu canto na cerca de pau-ferro de minha casa. Um canto diafragmático com o esplendor dos raios tropicais da Terra da Luz! Eu ficava aturdido. Precisava amanhecer se não perderia o tempo e ele não tardaria a diluir-se em décadas e uma vida toda podia definhar-se acaso houvesse demora em acordar.
Cinco horas da manhã, pedalo veloz pela rua grande silenciada em séculos de história, dormente como um boêmio que principia seu sono àquelas horas do início do dia. A sinuosa rua ia me tragando.
Os pardais se multiplicavam em cada copa de árvore, em meio à rua catavam grãos, restos de comida, banhos de areia e sol. Alguns ignoravam a minha presença, parecia a seus olhos um intruso naquela manifestação de plumas. Passava e alguns sequer saiam do lugar.
- Pássaros pequeninos que se aproximam de humanos – refletia ainda em jejum. Fossem canoros canarinhos seriam presas fáceis. Visgo, alçapão, fojo e o fim seria uma gaiola pendurada num quarto qualquer da casa. Papai ia gostar, era um apreciador de cantos. Mas aqueles pequenos seres estavam ali indiferentes à minha presença.
- São alegres porque são pássaros- conclui. Sabia que não era só isso. O sol, as árvores frutíferas, a cumeeira, o muro, as ruas e todas as árvores de minha cidade sabem que só isso não bastava. Ser pássaro não é condição para ser feliz, é preciso travar com o dia o exercício de liberdade.
Canário engaiolado canta triste a dor que é silêncio aos pardais sem sol, muros, árvores e ruas.
Chego ao meu destino com asas de pardais e cantos de canarinhos. Amanheço.
(Marciano Ponciano)
SAGRADO CORAÇÃO
A matriz foi aberta pelo sacristão com um vigor diferente dos dias lentos e mornos da antiga Aracati. O sino com sua voz mortiça anunciava a passagem de mais um cristão. Demorou pouco para que a igreja estivesse lotada pelas filhas do Sagrado Coração que se puseram em torno do corpo a debulhar ave-marias.
As falas monótonas das senhoras continham uma mecânica própria e as palavras eram ditas, por vezes, como uma canção triste que adensava o clima daquela sala. Entre um mistério e outro havia quem especulasse sobre o falecido, sua causa mortis e dependendo das respostas maledicências iam contornando a reza. Entre elas eram frequentes os comentários de Maria do Carmo e Genoveva, carolas viúvas que encontravam mais sentido na vida dos outros que em suas próprias.
- Ave Maria cheia de graça... o véu está furado.
- Bendita sois vós entre as mulheres... alguém precisa trocar a vela.
- Santa Maria mãe de Jesus... dizem que era um sovina.
- Agora e na hora... o Senhor tem cada filho! Pão duro até na morte!
Um jogo frenético de comentários se sucedia até que o corpo fosse encomendado. Depois se separavam e cada uma, com a indiferença de estranhos, seguia seu caminho até em casa.
O falecimento de quem quer que fosse era motivo para encontros -davam sentido às suas vidas.
Aquele instante as resgatava da monotonia dos dias e as colocava diante do momento mais doloroso de nossa existência - a morte.
Novamente o som lúgubre do sino da matriz soava.
-O mês está animado! Dois corpos para encomendar-pensaram Maria do Carmo e Genoveva quase num instante de telepatia.
Ávidas por serem as primeiras a chegarem à matriz depararam-se com a sala cheia das senhoras do Sagrado Coração que rezavam com um fervor diferente.
– Deve ser alguém importante! -pensaram.
Todas as filhas da irmandade estavam presentes e isto só ocorria quando se tratava do falecimento de gente muito distinta e importante para a centenária Aracati. A muito custo conseguiram atravessar o círculo de senhoras que oravam.
Quando chegaram aos seus lugares de costume, retiraram de seus bolsos o terço de contas de marfim, afinaram as suas preces ao canto dolente de suas companheiras e gelaram. No centro da sala estavam os seus corpos. O transe daquela imagem só foi interrompido quando elas ouviram comentários sobre suas vidas entre um mistério e outro.
(Marciano Ponciano)
MARÉS- 1° MOVIMENTO
Há silêncios...
Por uma centelha, a essência desta cidade fumega entre paredes de salitre e resistência. Lá, por entre as paredes que se vão erguendo imponentes, o que guardar? Ar rarefeito, podridão.
Um poeta falou... onde?
Silenciosamente uma construção de repetições enfraquece a fortaleza das palavras, dilui-se em quantidades absurdas de nada...
A palavra... Em que acreditar?
Um ponto carmim agoniza na imensidão escura da sala de morrer. Palidez, paleta desnuda, movimento estático, olhar perdido, vulto célebre como tantos que engrossaram a lista dos martirizados pela superficialidade do credo.
A mão jaz num corpo adormecido.
Passaram-se tantas águas! Inundaram de conversa a existência de homens presentes, de luzes, de cores, de sabores, pela laboriosa dialética do que foi- ladainha dos derrotados.
A parede é espessa, e seu salitre é presença de um bicho d'água que há muito nos mostra quanto somos nada. Lama, lodo...
Quem faz a parede crescer?
(Marciano Ponciano)
AS AVÓS SÃO ANJOS CAÍDOS DO CÉU
Minha avó se sentava num banco de madeira localizado em frente à casa, debaixo do alpendre. No banco marcado por centenas de golpes de facão, acumulados ao longo dos anos, por ser ali a melhor altura para abrir coco e servir às visitas. Eu, certamente motivei algumas dezenas desses golpes a fim de beber a água doce que brotava dos coqueiros gigantes plantados por minha avó.
A cada visita ela olhava para mim e entendendo o meu olhar- todas as avós entendem os olhares dos netos- dizia baixinho:
- No armário tem castanha e rapadura batida, você quer?
Da minha boca não saía palavra. O meu olhar traduzia o querer e junto ao armário de jacarandá lá estava eu aguardando ansioso por mais um agrado da minha avó Mariquinha. Depois ela retornava ao velho banco, tirava do bolso de seu vestido o cachimbo de barro, enchia-o de fumo, acendia o fósforo e pitava o seu cachimbo. Eu, sentado no chão, ficava ali deliciando os sabores do caju e da cana e observava atento o desenho que a fumaça fazia a cada tragada de minha avó. O desenho se desfazia rápido assim como o tempo.
Os anos passaram-se, minha avó foi para o céu- tenho certeza. Pois as avós são anjos caídos do céu que depois de acenderem nossos corações na terra retornam docemente para os braços de Deus.
Hoje quando retorno ao sítio Ingazeiras é como se visualizasse a mesma cena. Ali ainda encontro a casa, o alpendre e o velho banco. O armário não, um parente levou-o como herança. E fico em meu silêncio como se refizesse o mesmo gesto quando era criança e cá em meu coração sei que diria:
- No armário tem castanha e rapadura batida, você quer?
E eu eternamente digo que sim à sua lembrança.
(Marciano Ponciano)
Aracati, 12 de outubro de 2010.