Arte

Wednesday, 17 October 2012 20:21

STÉLIO TORQUATO: RIMAS QUE REVELAM O CEARÁ

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Stélio Torquato. Detalhe da capa da obra Iracema. Armazém da Cultura Stélio Torquato. Detalhe da capa da obra Iracema. Armazém da Cultura

 

Stélio Torquato é um escultor de palavras. De sua dedicação ao verso metrificado surgiram projetos valiosos a exemplo da adaptação para a literatura de cordel do romance Iracema de José de Alencar publicada este ano pela editora Armazém da Cultura. Em entrevista cedida com exclusividade para o Aracati das Artes o vate cearense nos fala sobre seus mais recentes projetos. 

Marciano Ponciano- Você participou do lançamento da coleção "Alencar nas Rimas do Cordel", lançada este ano pela editora Armazém da Cultura, com a publicação da adaptação de Iracema e O Tronco do Ipê, este último sob a pena de Arievaldo Viana. O projeto reúne outros seis cordelista com o mesmo intento. Fale-nos sobre este projeto. 

Stélio Torquato- A idealização do projeto "Alencar nas Rimas do Cordel" foi da escritora e artista gráfica Arlene Holanda, de Fortaleza, e visa editar oito adaptações em cordel de romances de José de Alencar, selecionados entre os títulos mais relevantes de sua criação literária. Foi levado em conta a diversidade de temáticas da produção do escritor cearense, sendo escolhidos três romances indianistas, três urbanos (ou de costumes) e dois regionalistas. Os alunos das séries finais do ensino fundamental constituem o público-alvo desse trabalho. Em meu julgamento, no entanto, acredito que outras faixas etárias e outros públicos certamente se agradarão desse projeto. Além de mim e do Arievaldo Viana, foram convidados para a realização do projeto os seguintes cordelistas: Fernando Paixão (que verteu O Guarani para o cordel), Godofredo Solon (Ubirajara), Marco Haurélio (Lucíola), Rouxinol do Rinaré (A Viuvinha), Gadelha do Cordel (Senhora) e Evaristo Geraldo (O Sertanejo). 
 
Marciano Ponciano- Da narrativa indianista à poesia metrificada, o que em Iracema se perde e se renova com essa transmutação literária? 
Stélio Torquato- Em primeiro lugar, é preciso entender que a linguagem e a estrutura do cordel possuem características próprias, forçando sempre uma modificação do texto original quando do processo de versão para essa modalidade de escrita popular. O número de personagens e de cenas da obra original, por exemplo, será sempre reduzido no cordel, que é marcado pela pequena extensão. Da mesma forma, a linguagem popular do cordel, que dialoga com a oralidade, exige da parte do cordelista um trabalho de transformação da matéria linguística dos textos originais. 
Embora essas mudanças também tenham acompanhado a minha versão de Iracema, procurei ao máximo manter uma fidelidade ao texto de Alencar, o que foi facilitado pelo fato de esse romance se erigir na fronteira entre a prosa e a poesia. Um exemplo: a abertura do romance é praticamente um conjunto de frases setissilábicas, chamadas também de redondilha maior. Vejamos: Verdes mares bravios (seis sílabas poéticas); de minha terra natal, (sete sílabas poéticas); onde canta a jandaia (sete sílabas poéticas); nas frondes da carnaúba (sete sílabas poéticas); Verdes mares, que brilhais (sete sílabas poéticas); como líquida esmeralda (sete sílabas poéticas); aos raios do Sol nascente, (sete sílabas poéticas); perlongando as alvas praias (sete sílabas poéticas); ensombradas de coqueiros” (sete sílabas poéticas). 
Em minha versão, procurei sempre reproduzir as frases do texto original, o que nem sempre foi possível devido à necessidade de manter a rima. Nesse sentido, a transposição do trecho que apresentei ficou assim: 
 
Oh! verdes mares bravios 
De minha terra natal, 
Onde os doces assobios, 
Da jandaia sem igual, 
Vão-se ouvindo nos baixios, 
Tão suaves, tão macios, 
Vindos do carnaubal. 
 
Oh! verde mar, colossal, 
Esmeralda ao sol nascente, 
Que beija o alvo areal 
E o coqueiral imponente, 
Serenai, mar eternal, 
Para que possa, afinal, 
Te cruzar amável gente. 
 
Marciano Ponciano- A prosa alencarina é rebuscada e de difícil compreensão para os nossos jovens? 
Stélio Torquato- Sim, e isso decorre principalmente devido à mudança do público leitor. Quando a obra foi publicada, em 1865, eram principalmente as damas da classe economicamente mais elevada que consumiam as obras do autor cearense. Eram outros os modos de se vestir, de viver e também de se fazer literatura. Havia uma certa solenidade na linguagem. Além disso, as referências culturais foram se perdendo ou se modificando com o tempo. Por tudo isso, há sim um estranhamento da parte do jovem que hoje se propõe a ler as obras oitocentistas. A redução desse estranhamento, avalio, passa obrigatoriamente por uma educação literária do jovem, que exige fazer da leitura um hábito. Assim, quanto mais o jovem ler, mais se acostumará com a maneira como se escrevia em outras épocas.  
 
Marciano Ponciano- Enquanto estudioso das letras, que contribuições reais de apreciação estética as adaptações trazem para aqueles que não conhecem os clássicos? 
Stélio Torquato- Não sou completamente avesso a tentativas de adaptar para o público jovem os textos do passado, que eram escritos de forma bem diferente do que se vê hoje. Todavia, algumas tentativas de simplificação da linguagem nem sempre têm um resultado eficiente, porque algumas iniciativas editoriais terminam desfigurando o texto inicial. Acredito que o adaptador deve ser alguém que conhece bem a literatura e a linguagem para procurar reter ao máximo as soluções estéticas do texto original. Há também o cinema, os quadrinhos e o cordel que procuram aproximar o leitor jovem dos monumentos literários do passado. Todavia, dada a diferença entre o romance e essas outras formas de expressão, cabe ao professor mostrar ao aluno que se tratam de recriações do texto original. Não adianta ao aluno trocar a leitura do livro pelo filme, por exemplo, pois a escola, em princípio, procura explorar meandros de linguagem que não estão nas adaptações. As versões, independente do veículo (cinema, quadrinhos, cordel, etc.), devem ser valorizadas por si mesmas, e não a partir de sua suposta condição de ponte para a obra original. Isso não quer dizer, no entanto, que eu não me sinta por demais feliz quando alguém, ao ler meu cordel, se interessa pela obra original. Mas sou professor de literatura, e isso talvez explique o motivo dessa minha satisfação. 

  

Marciano Ponciano- Verifica-se um grande número de adaptações existentes no catálogo das editoras. Algumas mantendo o gênero textual original outras utilizando novas linguagens como é o caso dos quadrinhos. Em Iracema você se utiliza da rima metrificada para narrar o romance homônimo de José de Alencar. Quais foram suas motivações para essa escolha? 
Stélio Torquato- Sou um caso estranho no âmbito do cordel. Creio que fui escolhido pelo cordel, em vez de ter ocorrido o contrário. Explico: em 2008, quando me lancei à tarefa de verter para o cordel alguns clássicos da literatura universal, eu jamais imaginei que o cordel ganharia a dimensão que hoje ocupa em minha vida. Meu propósito, à época, foi apenas contribuir para levar meus alunos a um contato com as grandes obras do passado. No entanto, logo após lançar uma versão do Dom Quixote, minha vida começou a ser dominada pelo cordel. Hoje, além de ter escrito mais de 70 textos em cordel, muitos ainda não publicados, coordeno um grupo de estudos sobre a literatura popular, oriento trabalhos nessa área na pós-graduação e me integrei a uma deliciosa teia composta por grandes cordelistas. Por essa razão, a opção pelo cordel foi quase espontânea. Por outro lado, é interessante informar que quando fui convidado pelo Armazém da Cultura para integrar o projeto "Alencar nas Rimas do Cordel", eu já havia escrito minha versão do romance Iracema, o que ocorreu por eu amar esse texto, misto de prosa e de poesia. 

  

Marciano Ponciano- Temos conhecimento de um projeto seu sobre a obra “A Normalista” do escritor naturalista Adolfo Caminha. 
Stélio Torquato- Essa versão de A Normalista faz parte de um outro projeto, já bastante avançado, de levar clássicos da literatura cearense para o cordel. Quando fui convidado pela Arlene Holanda para participar desse projeto, optei pelo romance A Normalista devido a minha ligação afetiva com Aracati, terra natal de Adolfo Caminha e onde morei por seis anos. Por falar nisso, permita-me uma confissão e um desabafo: quando cheguei na terra dos bons ventos, a primeira coisa que quis conhecer foi a casa de Adolfo Caminha. Infelizmente, me deparei com um prédio em ruínas. Durante o tempo que residi na cidade, procurei ver se de alguma forma eu poderia contribuir com a restauração do prédio, transformando-o em um espaço cultural. Todavia, não demorou para eu perceber a falta de interesse das autoridades locais em preservar uma peça arquitetônica tão importante, e que poderia atrair turistas para o lugar. 

  

Marciano Ponciano- O estudioso das letras e o poeta. Quando começa um e termina o outro? 
Stélio Torquato- A divisão é feita principalmente a partir da metodologia, da forma de abordagem da literatura. Como estudioso, professor e pesquisador, a relação com o texto literário tem que ser mais cerebral, pois a literatura passa a ser abordada como uma forma de conhecimento. A ferramenta, digamos, é mais científica. Já como escritor, a relação é mais intuitiva, mais lúdica. A despeito disso, não poucas vezes o pesquisador e o escritor se comunicaram, dialogaram, sentaram-se à mesa para um bate-papo. É bom lembrar que muitos escritores se tornaram analistas, e vice-versa. Um exemplo que me vem à mente neste instante é o caso do escritor catarinense Cristovão Tezza, que após conciliar uma brilhante carreira acadêmica com a produção literária, terminou optando apenas pela criação ficcional, deixando a docência universitária. 

  

Marciano Ponciano- Em que projetos você se dedica atualmente? 
Stélio Torquato- Além do projeto "Clássicos cearenses em cordel", participo de alguns projetos ligados à questão do combate às drogas, à educação do trânsito e à difusão de fábulas antigas através do cordel. Nosso grupo de estudos de literatura popular vai de vento em popa, estando programada a realização de um evento sobre o cordel no final do primeiro semestre de 2013. Agora mesmo, fui convidado para participar de uma excursão cultural que passará por várias cidades cearenses, incluindo Aracati. Paralelo ao cordel, tenho alguns livros de contos e pelo menos um romance em vias de publicação. Em resumo: os próximos meses serão de muito trabalho na seara literária. E isso me enche de contentamento.  
 
Sobre o autor: 


Stélio Torquato Lima (This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.) nasceu em Fortaleza, em 08 de outubro de 1966.  
É doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB – e professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Ceará – UFC, onde também coordena o Grupo de Estudos Literatura Popular (GELP).  
Publicou a versão de 15 obras da literatura universal para o cordel, lançada na Bienal do Livro do Ceará, em 2010.  
Seu cordel A bruxinha Ekkol Lógikka foi selecionado no Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel 2010 – Edição Patativa do Assaré, organizado pelo Ministério da Cultura. 
O cordel O Pastorzinho de Nuvens, do autor, foi premiado em primeiro lugar em 2011 pelo PAIC (Programa de Alfabetização na Idade Certa), da Secretaria de Educação do Estado do Ceará.  
Recentemente, a Ensinamento Editora, de Brasília, lançou três cordéis do autor: Minha Cidade, A Escola do meu Filho e Cordel da Sustentabilidade. 
Em agosto de 2012, lançou uma versão do romance Iracema na Bienal do Livro de São Paulo. A obra, publicada pela editora Armazém da Cultura, de Fortaleza, faz parte do projeto “Alencar nas Rimas do Cordel”, destinado à publicação da versão de oito romances de José de Alencar para o cordel. 

 

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Marciano Ponciano

MARCIANO PONCIANO- Sou natural de Aracati-Ce, terra onde os bons ventos sopram. Na academia da vida constitui-me poeta, realizador de sonhos, encenador de máscaras. Na academia dos saberes acumulados titulei-me professor de Língua Portuguesa e especializei-me em Arte-Educação. O projeto de vida é semear a arte por onde passe: teatro, poesia, artes plásticas- frutos da experiência acumulada em anos dedicados a ser feliz. Quando me perguntam quem sou - ator, poeta, encenador, artista plástico, educador? Afirmo: - Sou poeta!

Publicou:

Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. própria. Aracati-CE. 1996.

Caderno de Literatura Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2006.

aracaty. Cadernos de Teatro. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2010.

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Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.