Marciano Ponciano- Gerson, como você começou sua carreira nas artes visuais e na litografia?
Gerson Ipirajá- Minha relação com as artes vem do DNA da família Ipirajá. Meu avô, Antônio Ipirajá, foi pintor e fotógrafo. Meus tios, Anquises Ipirajá e Nabor Ipirajá, foram artistas plásticos e cineasta. Abelardo Ipirajá foi músico, minha mãe Terezinha Ipirajá foi fotógrafa e estilista. Meu pai, Evaristo Barreto, desenhista técnico. Então posso dizer que a influência artística está no sangue. Todavia, iniciei minha experimentação plástica e visual em Aracati, cidade de origem da minha família paterna. Na Terra dos Bons Ventos fui morar aos 17 anos, na rebeldia da adolescência em busca do brilho da lua e estrela de Canoa. Em Aracati me encantei com o mundo das artes. Foi lá que conheci o artista Zé Tarcísio. Ele generosamente abriu as portas de seu ateliê. Essa experiência inicial me pôs em contato com livros, obras, objetos, ex-votos. Todo um mundo novo que eu fui descobrindo. No ateliê do Zé, sob sua orientação, foi onde dei meus primeiros passos na xilogravura. Depois vieram os cursos do Instituto Dragão do Mar. Da confecção de máscaras para o Grupo Cervantes, às exposições do Museu Jaguaribano, às Quartas Culturais promovidas pelo Lua Cheia eu fui tomando gosto e me envolvendo. Quando percebi não tinha mais retorno, era seguir no rumo das descobertas. No ano 2000, vendi minha casa e retornei à Fortaleza-CE para tentar a profissão e montar um ateliê. A partir daquele momento outras experiências de formação se conjugaram (Eduardo Eloy, Ana Leticia Quadros, Evandro Carlos Jardim, Rubem Grillo). Morei por oito meses em Salvador-BA, e lá fiz residência sob a orientação de Gabriel Arcanjo no ateliê de Gravura do Museu de Arte Moderna. Foi nesse ateliê como o Professor Renato Soares que vi pela primeira vez prensas e pedras litográficas (uma coleção do acervo do MAM desenhadas por Carybé e conservadas no Departamento de Artes Gráficas). Aquela vivência foi outro momento de encantamento! Em 2016, fui selecionado para uma residência no Laboratório Oficina Guaianases de Litografia /UFPE no Recife. Na capital pernambucana, tive a sorte de cair nas mãos e atenção de Mestre Hélio Soares (saudosa memória), que me ensinou todo o bê- á-bá da litografia. Desde 2016 me divido entre Fortaleza e Recife. Recebi também orientações de Miriam Tolpolar no ateliê da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho; de Ricardo Melo no O Ateliê 29, Olinda-PE e de Flávio Gadelha, Gravatá-PE. Estas são minhas experiências no aprendizado da litografia.
MP- Quais foram suas principais influências artísticas ao longo de sua carreira?
GI- As influências no trabalho vieram sobretudo do ver e sentir. Há algo também atávico e ancestral na minha experiência artística, como se fosse uma psicografia. Essa conexão se dá no momento do fazer. Alguns artistas contemporâneos muito me influenciam, entre os quais destaco Rubem Valentim e Miguel dos Santos. A raiz imagética do meu trabalho é composta por referências visuais dos povos originários: a pintura corporal, as ferramentas e armas; os objetos sagrados, as pinturas e gravuras rupestres, enfim, todo esse manancial que fala de nossa ancestralidade. Valho-me de tudo isso no meu caldeirão criativo.
MP- Como você descreveria seu estilo artístico e como ele evoluiu ao longo do tempo?
GI- Não penso muito em estilo. Nunca foi uma preocupação minha ter um estilo. Todavia, ao longo da minha trajetória artística segui um caminho que possibilitou ao meu trabalho uma característica visual. Dentro desta pesquisa fui me permitindo e buscando sutis variações na forma e no fazer que possibilitou uma corporeidade à minha obra. Atualmente, sigo experimentando na arte a vereda da tridimensionalidade.
MP- Você poderia nos contar sobre o processo criativo por trás de uma de suas obras?
GI- A fase atual tem me dado um novo vigor pelas descobertas. Ver os meus desenhos e pinturas se materializarem em objetos tridimensionais é incrível! Nesse trabalho conto com as mentorias e orientações técnicas de Paulo Régis e Júlio Jardim. Com Paulo Régis (Recife/PE) desenvolvo objetos realizados em madeira. Com o artista Júlio Jardim realizo peças em cerâmica. Essas experiências têm rendido resultados bem satisfatórios a exemplo da premiação de um de meus trabalhos na edição deste ano do Salão de Abril. Diante disso as coisas vão fluindo e à medida que o trabalho vai ganhando corpo surgem os convites para participação em eventos e exposições. Como a participação que farei na Feira SP Arte na Galeria OMA de São Paulo, bem como a participação por meio da Arte Plural Galeria na Feira ArtPE, que ocorrerá em junho deste ano. Este é um momento muito promissor na minha carreira.
MP- Como a cultura e a paisagem do Ceará influenciam seu trabalho?
GI- A cultura cearense é incrivelmente rica e nos inebria com todo o seu caldo de miscigenação. Ela está presente no trançado da palha do Cabreiro, em Aracati-CE, terra do meu pai e meus avós paternos. Eles tiveram a cultura da palha como alicerce familiar. No Cariri me aproximei mais ainda do mundo gráfico da lira nordestina. Foram várias idas. Para lá sempre retorno a fim de me abastecer culturalmente. Assim ocorre com a influência dos terreiros de Umbanda e seus Batuques de atabaque e macumba. Assim como no maracatu no qual sou brincante descompromissado. Assim ao ver uma arraia lancear no céu, sentir o sabor de uma rapadura e de uma cajuína. Assim é a experiência estética ao andar nas dunas de Canoa e me banhar nas lagoas do Cumbe. Guardo essa paisagem na memória. Como ter percorrido os monólitos de Quixadá e Quixeramobim em busca de sítios arqueológicos, de desenhos rupestres. Assim foi com os ex-votos de Canindé de cujos primeiros contatos ocorreram por meio da coleção do Zé Tarcísio. Todo esse caldo cearense de “buniteza” foi, no decorrer do tempo, codificando essas experiencias estéticas na minha busca como artista.
MP- Quais são os desafios e recompensas de trabalhar com litografia?
GI- A litografia é uma técnica apaixonante e muito difícil. A pedra é um enigma. Assim me disse certa vez o Mestre Hélio: “ela (a pedra) sempre está nos ensinando algo novo”. Essa tem sido a minha busca. Meu interesse é muito mais do que resolver a minha própria obra gráfica. Hoje sou responsável por um ateliê de Artes Gráficas (xilogravura, gravura em metal, litografia, monotipia e serigrafia), lugar onde estudo constantemente com o objetivo de realizar e editar também obras de outros artistas que por ele passam. Na gravura é assim, a coletividade se sobressai à individualidade. Isso é fantástico como aprendizado. Meu trabalho com as artes gráficas consiste em aprender e repassar conhecimento e experiências. Agregar artistas nesse espaço é, também, parte da missão do ateliê enquanto política pública de estado para as artes visuais. Nesse sentido a litografia, assim como as outras técnicas gráficas, me alimenta nesse movimento coletivo. Com a gravura obtive grandes êxitos na minha trajetória a exemplo da participação em Bienais importantes e no reconhecimento desse trabalho em Premiações Internacionais. Tudo isto que conquistei me possibilitou certa visibilidade e consequentemente uma efetiva participação nesse nicho e mercado da gravura.
MP- Como você vê o papel da arte e do artista na sociedade contemporânea?
GI- O artista deve ser um ativista do seu ofício. Ele deve colaborar para a formação de uma massa crítica. A arte é muito mais do que o belo. A arte é pensamento, problematização, posicionamento. A arte é como se fosse um "gibão" ou "armadura" que nos encoraja para transformar a realidade que o establishment nos coloca desde sempre.
MP- Existe algum projeto ou tema que você está ansioso para explorar em trabalho futuro?
GI- Sim. Estou articulando uma residência em um ateliê gráfico em Portugal. Quero dar continuidade, também, ao trabalho que venho realizando tanto no ateliê em Recife onde realizo os objetos em madeira quanto no envolvimento com as artes do fogo (cerâmica ). Trabalho para realizar uma exposição comemorativa aos 30 anos de minha trajetória artística prevista para acontecer em outubro deste ano no Museu da Cultura Cearense no Dragão do Mar. Estou dedicado à curadoria da exposição Panorâmica da obra do Zé Tarcísio que terá por itinerário: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Esta ação foi contemplada pelo edital do CCBB. Dedico-me ainda na produção de um Álbum de Gravuras com o Coletivo In-Grafika do qual faço parte. Estes são os projetos com os quais tenho me dedicado em trabalho e emoção.
MP- Como você se mantém motivado e criativo?
GI- O fazer me dá sentido à vida, Marciano. Essa é a motivação primordial. A criatividade surge com o trabalho, com a persistência! Não acredito muito em inspiração, acredito na busca.
MP- Que conselho você daria para artistas emergentes que estão começando a explorar a litografia?
GI- Quero estender essa resposta não só para o campo da litografia. Para se trabalhar nesse segmento o meu conselho é buscar o conhecimento nos diversos ateliês. Os mestres do ofício são o melhor caminho para esse aprendizado. Sem pressa, pois a litografia tem um tempo peculiar ao aprendizado. Aos artistas de todas as artes: acreditem, insistam. A escolha por ser artista é um caminho difícil. Todos sabemos! Todavia, nada é fácil. Ser comerciante, médico, advogado, astronauta, professor, todas essas profissões entre outras mais, requerem dedicação e teimosia. Portanto, repito, insistam. O caminho é feito por veredas e trilhas. Vale a pena a experiência de percorrê-lo. Lá na frente a gente pode perceber que a arte sempre fez e fará a grande diferença na vida da gente. Digo isso com a segurança de 30 anos dedicados ao exercício criativo. Posso garantir que o caminho na arte fez de mim um ser humano melhor.
A entrevista foi concedida por Gerson Ipirajá a Marciano Ponciano no dia 06 de maio de 2024.
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