Aracati

Friday, 01 February 2008 21:05

CAVEIRA MODERNA! CAVEIRA ETERNA!

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ESCOLA DE SAMBA O CAVEIRA. Carnaval de 1979. ESCOLA DE SAMBA O CAVEIRA. Carnaval de 1979. Acervo organizado por Netinho Ponciano

“Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana”. Nessa frase Marguerite Yourcenar, escritora belga, parece sintetizar a entrevista realizada com o Sr. José Moreno dos Santos, mais conhecido como Dedé de Railda. Puxador de samba, compositor e sócio fundador da Escola de Samba Caveira. Ele nos recebeu em sua casa com seu olhar firme e sua palavra certeira. Enquanto lá fora um carro berrava em decibéis um axé-music, Seu Dedé falava com ternura da memória da Escola de Samba Caveira objeto deste aprendizado.

Qual foi a sua atuação nos blocos em que o senhor participou? 
 
Eu brinquei em várias escolas de samba. Aqui em Aracati, sempre que uma escola de samba era formada eu era convidado a participar. Nós contávamos com uma pequena ajuda da administração municipal, mas havia uma parcela significativa do trabalho da própria escola que saía no comércio em busca de patrocínio. O comércio sempre colaborou muito para que a gente pudesse ser um folião, brincar direitinho, brincar à vontade, com satisfação. Tá entendendo? E todo mundo tinha sua possibilidade de trabalhar e se organizar, aqueles que não podiam arcar com a sua despesa com fantasia a gente se dispunha a ajudar. 

  

No meu caso: eu cantava o samba, a escola me oferecia a fantasia. Isso eu fiz no Caveira , no Malandro do Morro, no Dom Luiz, fiz em vários blocos em que eu pude participar. Você comprava o sapato e a meia. A camisa a gente entrava em acordo com o bloco e a pessoa mandava fazer a pintura, isto pago pela pessoa. Também fazíamos bingo, fazíamos brincadeiras, mas nunca foi feito por ninguém sozinho. Sempre havia várias pessoas participando. As pessoas que eram escolhidas para fazer a direção do bloco, para organizar... Todo esse pessoal trabalhava e tinham boa vontade. Era só terminar o ano que a gente fazia festa, bingo, fazia promoção pra não ficar também só a critério ou ao dispor de alguém que a gente viesse a procurar para ajudar. 

  

Havia muita organização na rua porque as escolas de samba na realidade eram respeitadas. O pessoal queria ver, queria olhar pra ficar sabendo como acontecia a organização. E tudo isso a gente ficava satisfeito porque a gente brincava sem preocupação. Não existia malandragem, não havia perturbação, porque havia pessoas que se ofereciam para trabalhar voluntariamente para ver a melhor organização do bloco. 
 
O senhor participou da fundação de algum desses blocos? 
 
Eu participei da fundação do Caveira. O Caveira começou, na realidade, com pouca gente. Como tudo o que a gente faz começa de um pouco, né? Mas com um pouco organizado que com a continuação a gente olhava pra um canto e pra outro e não acreditava no número de componentes que o bloco já tinha. Começamos com 70/80 integrantes. E o nível sempre foi esse: um punhadinho na bateria, outro tanto nas alas, tinha também os tocadores de sopro na qualidade do saudoso Chiquinho de Eurípedes, Chico do Tuba que ainda está vivo, Seu Bruno, Bosco, filho dele, e demais componentes. A gente tinha uma equipe de sopro porque ajudava muito e chamava muito a atenção. 
 
Quem eram os integrantes da primeira diretoria do Caveira? 
 
Quem começou e era muito interessado e lutou muito por isso foi o saudoso Barra de Aço. Havia também nesse mesmo período Bozin, Monteiro Rolan, Manuel da Coelce, Zé Maria Picorrel e vários outros que se juntaram e atenderam ao convite para formar a escola de samba Caveira. 
 
De quem era a responsabilidade do samba enredo? 
 
A responsabilidade do enredo era do cidadão que Nosso Senhor já levou...o saudoso Gustavo. Ele fazia o enredo, o samba e... Monteiro também participava, certo? Era feito assim. 
 
Qual era a formação da bateria da Escola de Samba Caveira? 
 
Os instrumentos eram... Tinha cuíca que era uma novidade e era o saudoso Barra de Aço quem tocava. Surdo, triângulo, reco-reco, cabaça, tarol, repique, tantam. Nos instrumentos de sopro tocavam Chico do Tuba (trombone), Pedrinho Quenga, Chiquim de Eurípedes, Seu Bruno, Bosco de Morais, Joaquim Sebastião, seu primo Raul... Eram uns oito a dez músicos na parte de sopro. 
 
O que mais chamava a atenção quando o Caveira entrava na avenida? 
 
Rapaz o que mais chamava a atenção era a cadência. O instrumental. Todo mundo tocava bem... Todo mundo ensaiava muito tempo e o pessoal ficava admirado com o batuque. O batuque era essencial para chamar a atenção do folião. Era só o bloco passar que todo mundo acompanhava até o encerramento. 
 
Quais eram as cores do bloco? 
 
As cores variavam entre preto e branco. Por exemplo: quem pegava uma ala de bermuda uma ala era só preta a outra era preto e branco. Outros a camisa era preta com uma caveira pintada de branco nas costas. Umas alas eram chapéus outras eram tiras. Quando pegava uma ala de tira preta a outra era branca. E era assim. Geralmente era preto e branco não tinha essa de muito colorido não. 
 
Qual era o símbolo do bloco? 
 
Era uma caveira. 
 
O Caveira chegou a ter quantos integrantes? 
 
Nós chegamos a sair com 380 componentes. A maioria composta por adultos. Crianças eram poucas o suficiente para chamar a atenção do público. Aquela criança que sabia dançar bem era passista. 
 
Quando o bloco começa suas atividades? 
 
Nós começávamos com seis a oito meses de antecedência. Nunca se procurou fazer em cima porque tudo em cima sai mal organizado. Faz uma coisa, não faz outra. Havia uma comissão que ficava cobrando da gente, que fazia várias reuniões. Era até no Clube Sete de Setembro na época do saudoso Nogueira Ponciano. A maioria dos ensaios acontecia ali. Depois nós passamos a ensaiar no Art Clube ligado ao Sindicato da Fábrica de Tecidos Santa Tereza. Toda noite o ensaio era ali. Os ensaios também eram muito festejados e havia grande participação das pessoas. Quando nós íamos ensaiar... Ah, meu amigo, lá enchia. A multidão corria para lá. Porque sabia que ia ver coisa que agradava. 
 
Houve um ano em que o Caveira não saiu e este fato deu inspiração para um enredo, senão o mais famoso da escola. Relate-nos. 
 
Aconteceu assim: Na primeira gestão de Abelardo Filho ele nos forneceu uma quantia que deu para formar, faltando pouca coisa.  
O resto a gente conseguiu no comércio local. No ano seguinte isso não aconteceu. Então pegou todo mundo despreparado porque ninguém se reuniu pra trabalhar como a gente fazia antes com seis a oito meses de antecedência. Quando chegou o período não teve essa ajuda aí o bloco não teve como sair. Sair de qualquer jeito pra ser chateado, o pessoal ficar com negócio de piada, relaxando... Aí nós resolvemos não sair. Por esse motivo parou por alguns anos. Aí quando foi pra formar novamente... Que o pessoal dizia: "Ai que o Caveira acabou-se!", "Ele não vai mais sair!", "Cadê o prestígio e tal?", "Um bloco tão falado. Ninguém sabe o que é que houve." No ano em que nos preparamos para sair foi o que Gustavo (Jiló) em parceria com outras pessoas responsáveis pelo samba enredo, escreveram a música só dizendo que o Caveira ia sair e quem dissesse que o Caveira não ia sair não tinha cabeça pra pensar. Exatamente o samba enredo foi assim: 
 
Quem disse que o Caveira não sai 
Não tem cabeça pra pensar 
lá, lá, lá, lá, lá, lá 
O Caveira vai sair 
lá, lá, lá, lá, lá, lá 
E o povo da rua vai sambar 
E eu vou gargalhar 
qua, qua, qua, quá. 
 
 
Então o enredo era pra ser assim porque quem duvidava ficou calado, quieto sem poder dizer nada. E na realidade viu o bloco voltar a vibrar e a trazer alegria para o carnaval de Aracati. Ficou na história... Até tinha uma outra parte que... Se não me falha a memória, dizia assim: 
 
O Caveira tem a sua tradição 
Você errou sem querer coração 
A sua profecia vai fracassar 
E eu vou gargalhar 
qua, qua, qua, quá 

  

Ouça o Samba enredo.

 

 

  

Todo o samba do Caveira ele era muito bem escrito. A turma não fazia assim da primeira vez, corria e gravava não. Chamava-se a diretoria pra ver se aprovava, se estava bem, se todo mundo estava satisfeito com o enredo e se combinava com o bloco, né? Era feito assim. 
 
O surgimento do trio elétrico favoreceu o fim desta atividade cultural em Aracati? 
 
Foi isso que aconteceu. Quem dirigiu não viu a outra parte, não quis dar mais chance a outra parte. Quando decidiram ser trio elétrico, pronto, foi só trio elétrico. Tava feito a situação... E o povo a reclamar a fazer pergunta a gente, porque não formava... Meu amigo! Como é que se pode formar uma coisa que não se esperava mudar tanto quanto mudou. O carnaval era escola de samba à tarde e à noite nos clubes com sua festa tradicional de muita gente. Agora estão voltando aos poucos, mas que na realidade pra quem conheceu o que era o Caveira no Aracati, o que era o Malandro do Morro, o que era os Índios... Os Índios saiam com uma quantidade de índios que parecia que vinham saindo era lá da Amazônia, tanta gente era! Era um dos maiores blocos, segundo Caveira, terceiro Malandro do Morro. Em questão de participantes. Esse carnaval que a gente está vendo aí podia está mais organizado. Por questão de espaço e por não reunir o povo antigo, dos antigos blocos que tinham experiência que sabiam de onde partiam, de onde começava. Como devia fazer para que se parecesse com o antigo... Isso não aconteceu. 

No primeiro ano que aconteceu quem me procurou veio aqui faltando duas a três semanas para o carnaval. A maneira como eu costumei trabalhar no carnaval eu achei que não tinha condições, não havia como... Isso foi uma das coisas que fez ficar muito diferente. Por sinal está nas mãos de pessoas que nunca souberam o que é carnaval...  
 
Hoje quem é encarregado naquela época era criança. Quer dizer... Não dá nem pra entender e ter lembrança de como era, de como começar. Eu acredito que deveria ser assim... já que tiveram essa ideia que tivesse seis meses antes tido a atividade de lembrar desse povo que formava essas escolas organizadas, de fama, de qualidade e que deixou nome na cidade, deu vida ao Aracati. Era pra ter feito assim... ter convidado essa gente! Mesmo que muitos não fossem mais... Mas que não ia ficar aquela sensação de não ter sido lembrado. As pessoas estão envolvidas, mas não estão correspondendo com as virtudes e com o pensamento e o desejo dos antigos que disso participaram. Eu digo sempre: Tudo na vida que se faz é preciso fazer misto, novos e velhos. 
 
Caveira moderna 
Caveira eterna 
Caveira é a turma da vitória 
Caveira ele sempre nos deu glória 
Caveira, Caveira faz um bem 
No carnaval de 76 
 
Ninguém segura o Caveira 
Ninguém segura o carnaval 
Do nosso Brasil, do Aracati 
De toda essa gente que é sensacional 
 
Caveira moderna 
Caveira eterna 
Caveira é a turma da vitória 
Caveira ele sempre nos deu glória 
Caveira, Caveira faz um bem 
No carnaval de 76. 

  

Ouça o Samba enredo. 

 

 

 


Que equipamento era utilizado para cantar o samba enredo? 
 
Era o seguinte a gente tinha um som, microfone, um amplificador em cima de um carrinho que era empurrado e haviam também radiadoras (cornetas). E a gente fazia o que podia. Os instrumentos tocando lá e a gente puxando o samba. 
 
Onde acontecia a concentração do bloco? 
 
Era na praça Dom Luís. Sempre se saía de lá. Em frente à casa do saudoso Barra de Aço. 
 
Onde acontecia a dispersão? 
 
O bloco nessa nossa época não tinha um canto certo não. Porque na realidade não era um bloco que só ia até a "ponta da rua" (final da rua Cel. Alexanzito). A gente ia até a "ponta da rua" uma, duas vezes. Tinha convite nas grandes residências...Grande que eu digo assim: casa grande onde coubesse todo mundo como a casa do finado Alfredo Narciso, e outros que convidavam. Eles ofereciam lanche... Era uma coisa muito bonita, muito agradável. Todo mundo corria para esse carnaval porque sabia que era bem recebido. Além do carnaval tinha essas casas que nos convidava, e também aos outros blocos como os Malandros do Morro, Os Baianinhos que foi o finado Assis Cebola quem fundou no Democrático, Clube da Juventude que chamavam. E tudo isso não existe mais. Nós íamos aos bairros... Bairro de Fátima... E chamava mais atenção. A gente pedia a Deus que chegasse a época do carnaval que era pra ter essa diversão porque na verdade era o tempo que a gente mais se divertia. 

 
Se procurar no Aracati tem tanta gente que sabe o que dizer, o que falar, o que conversar, o que mostrar, o que foi o Aracati que você fica até admirado. 
 
Na sua opinião qual foi o samba enredo mais importante idealizado pelo Caveira? 
 
Na minha opinião foi o que falava do presépio, que começava assim... Eu não sei todo não porque esqueci de vários versos. Mas era o seguinte: 
 
Fogo mais fogo lançamos ao mar 
O bumba-meu-boi o presépio a cantar 
Já faz muito tempo 
Tempo que não volta mais 
O nosso fim de ano 
Era animado de mais 
 
Esse foi o samba, que na minha opinião, ficou marcado na história do Caveira. Autoria de Gustavo Jiló e Monteiro Rolan. Infelizmente eu não me lembro dos outros versos, mas foi este o último samba que o Caveira levou para o carnaval de Aracati.  
 
E aí por fim dizia assim: 
 
Bumba-meu-boi tem que voltar 
Para alegrar a criançada do lugar 
E o presépio, que emoção! 
Nossos pais conhecem 
Mas os nossos filhos não. 
 
Fogo mais fogo lançamos ao mar 
O bumba-meu-boi o presépio a cantar. 

  

Ouça o Samba enredo.

 

 

 

Esse samba enredo foi criado assim com essa noção de fazer a criançada entender que tinha a escola de Samba Caveira, mas também tinha presépio, tinha fandango, tinha várias outras diversões que todo mundo dava valor porque ia pra participar. No fim de ano quem queria Congo a opção era Congo. Quem queria presépio a opção era presépio. O povo reclama quando chega o final de ano e pergunta cadê o presépio que não existe mais? 

  

Quer dizer, aí está uma prova que quando existiam os antigos isso era tradição que é o que eu sempre falo. Daqui a alguns anos que tiver só a nova geração como é que isso vai existir? Como é que vai ter essa participação?


Entrevista cedida pelo Sr. José Moreno dos Santos, a Marciano Ponciano no dia 02 de fevereiro de 2008. Aracati-Ce. 

 

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Marciano Ponciano

MARCIANO PONCIANO- Sou natural de Aracati-Ce, terra onde os bons ventos sopram. Na academia da vida constitui-me poeta, realizador de sonhos, encenador de máscaras. Na academia dos saberes acumulados titulei-me professor de Língua Portuguesa e especializei-me em Arte-Educação. O projeto de vida é semear a arte por onde passe: teatro, poesia, artes plásticas- frutos da experiência acumulada em anos dedicados a ser feliz. Quando me perguntam quem sou - ator, poeta, encenador, artista plástico, educador? Afirmo: - Sou poeta!

Publicou:

Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. própria. Aracati-CE. 1996.

Caderno de Literatura Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2006.

aracaty. Cadernos de Teatro. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2010.

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Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.