O questionamento do Ministério Público Municipal baseou-se na vultosa quantia a ser gasta em poucos dias de folia em vista da precariedade dos serviços básicos em Aracati (saúde, educação, saneamento etc.), além de outros fatores agravantes como a crise econômica e a estiagem no Ceará. A Prefeitura Municipal se apegou ao discurso da “manutenção da tradição” que logo ganhou o respaldo popular desvirtuando questões tão essenciais à sociedade aracatiense. Muitos pensaram no fim do carnaval. Séculos de história e de tentativas de regulação da mais popular festa brasileira não silenciaram a alegria e a brincadeira. Presunção ou não isto iria acontecer exatamente em Aracati? O fato é que estamos em pleno carnaval, e “amanhã tudo volta ao normal”.
Venceu o discurso da tradição
Mas que tradição é essa? Para entendermos o carnaval de Aracati sob esse aspecto veremos que o carnaval é uma festa que se renova ano após ano.
SÉCULO XX
O acervo fotográfico de Abílio Monteiro, disponível na web, registra o carnaval em Aracati no início do século XX. As imagens apresentam o carnaval do corso com carros a desfilarem pela Rua Grande, das festas familiares ao som de instrumentos de sopro, dos bailes promovidos no Aracati Club.
A festa tradicionalmente evoluiu para a formação de agremiações carnavalescas: Malandros do Morro, Escola de Samba Caveira, Índios só para citar algumas. Esses grupos mantiveram suas atividades até o fim da década de 1980, quando surgiu o carnaval eletrizado com o trio elétrico Lazarão sob a alcunha populista de “Carnaval do Povão”. O surgimento do carnaval eletrizado suplantou o carnaval de blocos e de clubes. A tradição foi suplantada por intriga políticas conforme nos revela Antero Pereira Filho em seu artigo “Carnaval do Povão”.
O trio elétrico existiu soberano por vários anos. Uma festa tão plural precisava incluir outras manifestações até então adormecidas. 16 anos depois o carnaval de blocos seria incentivado com a criação de novas agremiações entre as quais “Unidos da Várzea da Matriz” presida pela saudosa carnavalesca Formiguinha e “Universo Negro” dirigido pelo artista plástico Hélio Santos- esta última ainda em atividade.
SÉCULO XXI
Em 2014 sob a denominação de “resgate” a Prefeitura de Aracati incentivou artistas locais a retomarem as históricas agremiações do carnaval Aracatiense. Assim voltaram à atividade “Os Índios”, “Caveira”, “Baianinhos do A e B”, “Malandros do Morro” etc.
Hoje é exatamente a manutenção da tradição o maior discurso do governo municipal e também o menor investimento. Ironicamente o termo “tradição”, que encontraria força na permanência das agremiações no carnaval de Aracati, parece se esvair diante da relação entre governo e artistas.
A falta de cumprimento do cronograma estabelecido para o repasse do apoio financeiro põe em risco a manutenção desta atividade. O problema não é recente, mas se agrava a cada ano. O advento das redes sociais deu voz e mobilização aos artistas insatisfeitos. Notas de pesar publicadas por integrantes dos blocos, em redes sociais, demonstram que a fala pela tradição está longe de sair do discurso. Para entender a gravidade somente na quarta-feira (03/fev.), dois dias antes do início da programação oficial dos festejos mominos, as agremiações receberam a subvenção municipal no valor de 12 mil reais. O repasse da prefeitura constitui a única fonte para a manutenção da atividade.
Atualmente cada bloco tem personalidade jurídica, prática recente, todavia falta, por parte destes grupos, uma mobilização capaz de incentivar a criação de políticas púbicas para o setor com a determinação de responsabilidades mútuas entre gestores e agremiações. Isto feito poderia resultar na sustentabilidade deste trabalho sem as discrepâncias verificadas nos últimos anos.
Voltemos à questão da tradição: que tradição é capaz de se sustentar diante de tal descaso? Felipe Ferreira, no “Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro” assim afirma:
Novas tradições precisam ser criadas para garantir que a alegria não seja motivo para barganhas políticas, acordos empresariais e outras coisas mais tão fáceis de correr em nome de uma pseudotradição.
Não há discurso que se sobreponha a alegria do carnaval. A alegria é nata ao brasileiro, ao aracatiense. Reinventa-se a cada ano. Vamos reinventar o nosso carnaval?