A Associação Cultural Solar das Clotildes completa no mês de outubro dois anos de sua fundação. Fale-nos das conquistas alcançadas.
R- Esse período de dois anos foi de grande importância para todos nós. Significou compreensão, abnegação e um forte espírito de voluntariado, por parte dos sócios. Amadurecemos juntos, planejamos e construímos sonhos e projetos e, felizmente, conseguimos colocar em prática muito daquilo que havíamos idealizado. Durante todo esse período, possibilitamos ações que vieram trazer à tona, novamente, a memória das Clotildes (Francisca, Antonietta e Ângela), bem como de Aristóteles Bezerra e do Professor Régis. Todos esses nomes, aos quais nos referimos sempre como Patronos do Solar, contribuíram de forma consistente para o fortalecimento da cultura do nosso povo. Para nós, do Solar das Clotildes, se faz imperativo que possibilitemos ações que venham a tornar cada vez mais presentes a memória e a história de cada um, na cultura de nossa região.
Durante este período promovemos alguns eventos bastante significativos, onde possibilitamos homenagens, realizamos oficinas, fóruns, lançamento de revista e CD e, ao longo do ano, ainda temos projetos para exposições e saraus.
Um ponto extremamente positivo, detectado no decorrer das ações que realizamos, vem sendo a efetivação de parcerias que tivemos oportunidade de realizar. Felizmente, há em nossa cidade um significativo grupo de pessoas extremamente preocupadas com a produção cultural e o acesso a projetos que venham a contribuir de forma positiva para a formação do cidadão aracatiense. A tendência desse grupo é se fortalecer cada vez mais e a população tende a ganhar com essa postura.
Em Aracati hoje podemos constatar uma expressiva preocupação dos grupos em se institucionalizar para fortalecimento de suas ações. Os grupos de teatro representam um bom exemplo desta nova face da arte aracatiense. Na sua opinião qual o maior desafio enfrentado por uma instituição de caráter cultural?
R- Você sabe tanto quanto eu que, se por um lado ver a execução das ações nos realiza profundamente, por outro, é um caminho muito difícil, às vezes, doído, solitário. Penso que a principal dificuldade se refere à falta de orientação com relação à formação e organização de uma instituição, bem como dos procedimentos legais e burocráticos que tem que cumprir e, principalmente, uma orientação eficaz para a elaboração de Projetos. É nessa perspectiva que muitas ações emperram, pois não há um apoio técnico, uma orientação específica para os grupos que se propõem a trabalhar na área cultural.
O mês de outubro assinala um momento muito especial para o Solar das Clotildes. Além da celebração de seu aniversário de fundação que outras atividades serão realizadas neste período?
R- Outubro é o mês mais especial para nossa associação. Além de comemorarmos, durante este período, os dois anos de fundação, temos uma data bastante significativa que é a celebração dos 145 anos do nascimento da nossa Estrela Maior, Francisca Clotilde. A querida escritora é para nós o índice, o alicerce de todos os nossos sonhos e ações. É o principal motivo e a maior inspiração para os nossos projetos, nossa postura de vida e filosofia da nossa instituição. Podermos comemorar juntos, através de uma associação de caráter cultural e na intimidade do nosso lar, agora em nossa sede própria, no Centro Histórico de Aracati, é montar deliciosamente um conjunto de peças significativas que compõem uma cena enriquecedora e comovente de se ver, participar e sentir.
No dia 20 de outubro, ratificamos, uma vez mais, a importância dessa ilustre cearense, para a cultura do povo brasileiro. E é aqui, neste solo abençoado em que ela resolveu aportar com sua família, em que serão realizadas as comemorações mais significativas.
Uma outra data importantíssima é o registro dos 101 anos da revista A Estrella, de circulação nacional, que foi publicada na região até o ano de 1921, inicialmente em Baturité e depois em Aracati, sob a direção de Francisca Clotilde e de sua filha Antonietta Clotilde. Entre os colaboradores e assinantes da revista podemos citar: Beni Carvalho, Cora Coralina, Cordélia Sylvia, Carlyle Martins e Carmen Thaumaturgo, que participou da publicação do número inicial, entre outros.
O momento também se engrandece quando, através dessas comemorações, promovemos o lançamento do segundo CD do músico aracatiense, Netinho Ponciano, que é bisneto de Francisca Clotilde.
Netinho é um instrumentista de vasta experiência, um autodidata que encontrou na música a expressão maior que as palavras, devido a uma significativa timidez. Através de seus registros sonoros, podemos conhecer boa parte da produção musical em Aracati, desde o Conjunto Gimara, nascido no colégio Marista de Aracati, passando pela profunda expressão musical do grupo Os Espaciais, na MPB de boa qualidade, produzida em parceria nas noites amenas da cidade, até o hábito e prazer de se apreciar uma boa música instrumental. Sua história musical nos traz um profundo relato da própria música produzida na região.
Portanto, temos motivos de sobra para comemorar este momento especial em que vivenciamos a oportunidade de contribuir de forma consistente e positiva para a valorização e divulgação da cultura do nosso povo.
O Solar das Clotildes reverencia a história de uma família de educadoras que vieram para o Aracati e aqui instalaram a primeira escola mista do interior do estado do Ceará. Francisca Clotilde, idealizadora deste projeto, foi uma mulher pioneira em seu tempo por diversas atividades que desempenhou. Fale-nos um pouco sobre Francisca Clotilde e sua relação com a cidade de Aracati.
R- Francisca Clotilde era uma mulher à frente do seu tempo e isso fez com que pagasse um alto preço, devido à sua postura de vida e opiniões, claramente expostas em suas produções.
Foi uma mulher que nunca aceitou depender de outrem, lutando com rigidez para conquistar o seu espaço na sociedade.
Aos vinte anos, quebrou a hegemonia na Escola Normal do Estado do Ceará, sendo a primeira mulher a compor o quadro de professores naquela instituição, após submeter-se a rigorosos testes, onde foi avaliada por uma banca exclusivamente masculina.
Em 1902 publicou o romance A Divorciada, tratando de um tema polêmico para a época. Os críticos o receberam com certa indiferença e, ao longo de sua vida, a escritora vez por outra recebia críticas ou indiretas maliciosas, por parte de alguns incultos.
Francisca Clotilde escrevia com frequência para jornais e revistas da capital e do interior. Seus artigos políticos, por exemplo, incomodavam a muitos, pois até mesmo os políticos com os quais ela simpatizava não eram poupados de críticas, se assim merecessem. A escritora, inclusive, chegou a publicar uma coletânea de artigos políticos escritos no jornal Folha do Comércio. Hoje é um livro raro. Tivemos a imensa satisfação de receber de presente um exemplar, pelas mãos de um grande amigo, o escritor Antero Pereira.
Outro fato interessante é que Francisca Clotilde foi a primeira pessoa a fundar um colégio misto, na região: O Externato Santa Clotilde. Por ele passaram pessoas que, ao longo da história, se destacaram na vida social e política da região.
Além das publicações em jornais e revistas, Francisca Clotilde também construiu, ao longo dos anos, uma vasta produção de dramas e contos que eram encenados pelos próprios alunos do Externato, chegando, inclusive, a realizar apresentações em Fortaleza.
Dito tudo isto, não podemos deixar de mencionar o lado humano da querida estrela das Clotildes. Foi um ser encantador que, apesar da vida difícil, resistiu com coragem às intempéries da vida, levando àqueles que a buscavam uma palavra sempre amiga, um lenitivo nos momentos difíceis ou uma orientação nos caminhos da nossa língua portuguesa.
Porque a sociedade aracatiense estabelece uma relação tão saudosista, às vezes repleta de indignação, com o seu passado?
R- Acredito que essa indignação diz respeito ao presente e não ao passado. O saudosismo, para muitos, é preferível a assumir a inércia e o comodismo diante dos conflitos e problemas sociais gritantes que detectamos em nosso dia a dia e que, direta ou indiretamente, interferem na questão cultural. Além disso, ainda não aprendemos, na cultura ocidental, a valorizar aquilo de que somos usufrutuários, seja antigo ou contemporâneo e que é essencial para nós. Preferimos nos lamentar eternamente por aquilo que perdemos ou que não fomos capazes de preservar. Esquecemos, no entanto, que a toda ação corresponde uma reação e que tudo o que nos cerca é fruto de nosso próprio trabalho, ou ausência dele. Que cada ano de lamúria significa um ano a mais sem produção consistente.
A cultura fervilha nas entranhas da nossa terra. Somos um povo com aptidões artísticas extremamente significativas, que borbulham em cada esquina, em cada praça, numa simples conversa com um grupo de amigos. A história se constrói com uma velocidade absurda. Nossa memória é que não está conseguindo acompanhar esse ritmo.
Parece que acreditamos, realmente, que no passado tudo fluía livremente, que todo artista era valorizado, que todos respiravam cultura, que a riqueza oriunda das charqueadas aniquilara a miséria do nosso povo... Sabemos que não é bem assim. Os nossos heróis do passado não são a antítese do presente. Talvez fossem mais corajosos, pois nem mesmo sob o açoite do chicote, calavam sua voz. Ao passo que hoje, apesar de todas as possibilidades, um simples cargo político é capaz de aniquilar a suposta ideologia de alguns.
Muitas vezes nos deixamos esmaecer, na tentativa de repetir o passado. Ora, o passado pode ser analisado, estudado, investigado, porém, jamais poderá ser vivido numa outra época que não seja a sua própria. Enfim, já está passando da hora de colocarmos em prática as ações que nos competem. Somos construtores da história; essa história coletiva, profunda, enobrecedora que espera de nós outra postura que não seja reclamar e buscar culpados.
Que o nosso passado possa ser respeitado, cuidadosamente registrado em livros, conduzido às gerações futuras como modelo do que pode ser utilizado como referência para acertos e correção dos erros que poderiam vir a se repetir. Mas não podemos olvidar de construir o futuro, esse tempo distante que começa agora.
Afinal, podemos aprender com o passado? De que maneira a sociedade aracatiense pode tirar proveito de nossa história?
R- Como já mencionei anteriormente, a análise do passado é capaz de provocar em nós mudanças bem significativas. Os povos mais sábios têm na sua cultura um profundo respeito pelos seus antepassados, pois através dessa herança se fortalecem para a construção de uma cultura cada vez mais consistente. Temos a responsabilidade de dar continuidade a essa história, de maneira íntegra, com ética e sensatez.
A rua Cel. Alexanzito (Rua Grande) constitui o mais importante patrimônio cultural edificado do Ceará, hoje patrimônio nacional. O que deveria ser feito para a revitalização do centro histórico de Aracati?
R- Atualmente, podemos observar um número bastante significativo de casarões antigos que há muito se encontram de portas fechadas e num lamentável estado de deterioração. Penso que poderia ser realizado um estudo criterioso, bem como um trabalho de revitalização dessa área em que fosse possível, por exemplo, o funcionamento de instituições ligadas à arte e a cultura; espaços em que pudessem ser realizadas exposições de arte, apresentações culturais, como encenações teatrais, recitais de música e poesia, cursos e oficinas que beneficiassem os artistas e comunidade, em geral. Penso que, através de um projeto bem formulado, haveria a possibilidade de parcerias para a restauração dos prédios antigos, onde os moradores da cidade participassem do processo de soerguimento do Centro Histórico de Aracati e compreendessem a importância desse trabalho para o fortalecimento da nossa história.
Atualmente, o que vemos é um total desconhecimento da importância dessa área para a divulgação da nossa cultura que, inclusive, se fosse reconhecida de fato, traria resultados positivos na área do turismo.
Aos poucos, estamos nos esquecendo de valorizar aquilo que é tradição e que se puder ser preservado, traria resultados positivos. A Rua Grande, por exemplo, encontra-se dividida em duas visões antagônicas e catastróficas: no trecho norte sofre com uma poluição sonora absurda que perturba diariamente os moradores e visitantes da área, sem que os órgãos públicos tomem as devidas providências. Ao sul parece uma “cidade fantasma”, que adormece fora de hora. Até as tradicionais procissões, patrimônio religioso imaterial e de valor inquestionável para o nosso povo, já não são mais vistas a enriquecer o cenário das ruas históricas do Aracati. As cadeiras nas calçadas, tradição do nosso povo desde a fundação da cidade, começam a sumir diante da falta de atrativos culturais e de entretenimento saudável.
Tomemos, portanto, uma postura mais coerente, no sentido de contribuir para que a riqueza cultural que herdamos e, agora, damos continuidade e da qual somos apenas usufrutuários, seja valorizada e preservada, para que as gerações futuras sejam respeitadas no direito de conhecer, estudar e analisar essa história.
E, é claro, se os órgãos públicos do nosso país, especialmente aqueles ligados a cultura, cumprissem realmente o papel que lhes foi confiado, seria muito mais rápido ver as mudanças positivas acontecerem. As ONG’s estão se mobilizando, a comunidade, aos poucos, desperta para a realidade que a cerca. Cabe aos órgãos competentes também colocarem em prática aquilo que descrevem tão bem em papéis, não esquecendo jamais que o tempo é implacável!
Qual o papel do Solar das Clotildes nessa árdua tarefa, levando-se em consideração o fato de estar situada no centro histórico de Aracati?
R- Estamos disponibilizando o nosso acervo para a população, possibilitando a todos o acesso aos registros referentes à nossa história e como o seu conhecimento e a consequente valorização irão se refletir positivamente na construção de nossas ações.
O público que assiste aos nossos eventos passa a compor o cenário histórico, percebendo-se como peça fundamental na construção de uma sociedade melhor, mais justa, que trabalhe no bem e que provoque no outro, a partir da sua própria postura, as mudanças necessárias para que, definitivamente, construamos um futuro promissor.
Entrevista cedida a por Rosângela Ponciano a Marciano Ponciano em 22 de outubro de 2006.